Por André Lobão*
No início os anos 2000 a mídia liberal brasileira começou a usar com frequência o terno "Tolerância Zero" para difundir o sucesso da política de segurança estadudinense que reduziu os índices de violência naquele país.
Aqui no Brasil em campanhas eleitorais candidatos do campo da direita e da extrema-direita também apropriaram do conceito como os atuais governadores dos estados de Rio e São Paulo, Wilson Witzel e João Dória, além do presidente Jair Bolsonaro. Inicialmente aplicada em Nova Iorque pelo então prefeito republicano Rudolph Giuliani, o sistema baseou-se no princípio da repressão inflexível a crimes menores para promover o respeito à legalidade e a redução dos crimes.
Porém, há tempos o modelo recebe contextações nos Estados Unidos sobre sua efetividade e consequências relacionadas ao aumento da população carcerária e aos casos de abuso policial. Hoje a população carcerária estadudinense é a maior do mundo, com 2,3 milhões de pessoas, e o assassinato de Goerge Floyd por um policial em Minneapolis mostra bem um exemplo nítido de abuso de poder.
Um relatório de 2017 produzido pela Human Rights Watch (HRS), uma organização que defende os direitos humanos, revela que as disparidades raciais permeiam todas as áreas do sistema de justiça criminal dos EUA, inclusive na aplicação das leis anti drogas. Os pretos são 13% da população e 13% de todos os adultos usuários de drogas, mas representam 27% de todas as prisões relacionadas às drogas. Homens pretos são encarcerados em quase seis vezes a taxa de homens brancos.
O estudo revela que a polícia estadudinense continua a matar pretos em números desproporcionais em relação a sua representação demográfica na população. Os pretos são 2,5 vezes mais sujeitos a serem mortos pela polícia do que os brancos. Uma pessoa preta desarmada está cinco vezes mais sujeita a ser morta pela polícia do que uma pessoa branca desarmada. O caso Floyd escancara a situação.
Bolsonaro copia Trump
Aqui no Brasil o governo Bolsonaro tenta de todas as formas criar condições para que as forças policias tenham carta branca para matar como nas tentativas de aprovação da "excludente de ilicitude", o que permite a qualquer pessoa cometer um ato geralmente criminoso sem ser punido por ele.
O Projeto de Lei 882/19, apresentado à Câmara pelo presidente Jair Bolsonaro como parte do pacote anticrime do então ministro da Justiça, Sérgio Moro, acrescenta a esse artigo o seguinte parágrafo: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.”
O fato é que Bolsonaro mais uma vez tenta imitar seu "amigo-irmão" ideológico que preside os EUA.
Veja-se como as inciativas se repetem: o governo Trump manifestou apoio quase incondicional às prerrogativas dos policiais, reduzindo ou removendo os mecanismos de fiscalização da polícia. O Departamento de Justiça dos EUA começou a dar descontinuidade às investigações e o acompanhamento das delegacias de polícia sobre as quais foram relatados padrões e práticas de uso excessivo da força e violações constitucionais.
A administração Trump reverteu um decreto de Barack Obama que limitava a aquisição de armamento militar ofensivo por delegacias de polícia. Em um discurso feito em julho de 2018, Trump encorajou os funcionários a usarem força desnecessária contra suspeitos. O Congresso apresentou o "Back the Blue Act", que restringiria severamente os direitos de civis de processarem policiais que os ferissem arbitrariamente. Estando assim posta a "Excludente de Ilicitude " na versão estadudinense.
Cabe também lembrar que, em abril deste ano de 2020, Bolsonaro publicou uma portaria que multiplica a quantidade de munições que pessoas com porte de armas no Brasil e agentes de segurança pública podem adquirir. Com a decisão, civis poderão adquirir mensalmente até 550 unidades de munição para diferentes tipos de armas. Antes, a quantidade máxima permitida era de 200 unidades por ano e não fazia a especificação dos calibres.
Elevou-se também a compra de projéteis em 98% entre os meses de janeiro e maio deste ano, em comparação com o mesmo período do exercício anterior. Segundo reportagem do jornal O Globo, somente em maio foram comercializados 1.541.780 cartuchos em todo o país, uma média superior a duas mil unidades por hora.
O fato é que a gestão pública brasileira da segurança pública insiste em reproduzir um modelo já considerado fracassado em seu país de origem, os EUA que convive com uma grande crise social e racial.
Impunidade legal
No fundo, a lógica é da higienização social que se aplica baseada no racismo estrutural existente tanto lá, quanto aqui no Brasil, sendo agora aplicado neste o momento o conceito da chamada "impunidade legal" para justificar a criminalização da pobreza e sua eliminação. Um exemplo já praticado disso é o chamado "auto de resistência" que na prática funciona da seguinte maneira: o policial mata um suposto “suspeito”, alegando legítima defesa e que na ação houve resistência a prisão. A ocorrência é registrada como “auto de resistência” e as testemunhas são os próprios policiais que participavam da ação. O crime quase nunca será investigado. Há anos a população preta das favelas e morros do Rio de Janeiro convive com a essa realidade impune que encobre o genocídio institucional. Só no ano de 2019, os chamados autos de resistência no Estado do Rio de Janeiro chegaram a 1.810, o que dá uma média de cinco morte por dia.
Documentários que abordam realidades parecidas
Para quem quiser se aprofundar mais sobre esse debate vale a indicação de dois documentários bem pertinentes neste contexto de violência policial e racismo estutural:
- O americano "13° Emenda", produzido em 2016, dirigido por Ava DuVernay, que mostra o crescimento da população carcerária no EUA entre os anos de 1980 e 2015, abordando o racismo estrutural e a privatização do sistema penitenciário estadudinense.
- E o brasileiro "Auto de Resistência", de Natasha Neri e Lula Carvalho, que aborda os homicídios praticados pela polícia do Rio de Janeiro. A narrativa é construída a partir das narrativas de mães de vítimas de violência, as quais lutam por justiça.
*André Lobão é jornalista.
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.