Por Márcio Medeiros Félix*
O centro do debate brasileiro não é a pandemia. Não porque ela esteja controlada: normalizamos mais de mil mortos por dia e sabemos que o número não reproduz a plena realidade. Ainda assim, falamos mais da crise política do que da pandemia porque nossa democracia está tão doente pelas investidas autoritárias quanto o seu povo está em razão da pandemia.
Diariamente, Bolsonaro e seus generais aumentam o tom autoritário e ameaças às instituições e adversários. Diante de qualquer sinal de reação às ilegalidades que praticam, falam em golpe, intervenção militar e outras hipóteses que, na prática, significam a mesma ameaça: afastar a vigência do pouco que ainda resta do Estado Democrático de Direito.
Como é típico do bolsonarismo (reproduzindo aqui as estratégias da extrema-direita em outros lugares do mundo), sempre debatemos hipóteses erradas, lançadas pra distrair. Ao sempre responder ao “programa máximo” bolsonarista, não nos damos conta de que estamos sempre normalizando coisas que antes pareciam absurdas. Nunca vivemos sob um aparelhamento tão vergonhoso do Estado para atender interesses pessoais ou de algumas corporações (boa parte, interesses absolutamente ilegais e imorais), o Estado foi pessoalizado pela família do Presidente, a corrupção toma todas as pontas do Estado ao mesmo tempo que é usada como razão para atacar adversários.
Embora seja necessário lutar contra as ameaças de um golpe que “fecharia” Congresso e STF, ignoramos já viver sob um regime tutelado pelos militares: tememos um ato final (“o golpe”) que não é necessário nesse momento, porque o regime bolsonarista se legitima na retórica de ataque às instituições e se garante com a ameaça sempre eficaz: “não nos façam perder a paciência”, sob pena de fechar o regime. Bolsonaro e seus generais diariamente traçam riscas onde os outros poderes e a oposição não podem cruzar.
Ao temer um ataque definitivo à Constituição, deixamos de perceber que a tutela militar já se estabeleceu e dirige o jogo político brasileiro há alguns anos. Embora tenha sido um golpe, o impeachment de Dilma Rousseff não foi o golpe: o momento de virada se deu um pouco depois.
Quando o STF se reunia para votar um Habeas Corpus que visava proteger o ex-presidente Lula da prisão política que se aproximava por conta da manutenção pelo TRF4 da absurda sentença do “juiz” Moro, o General Villas Boas foi ao twitter em 03 de abril de 2018 mandar um recado bem pouco disfarçado: ou o STF deixava Lula ser preso ou as Forças Armadas agiriam “contra a impunidade”.
Prender Lula naquele momento era fundamental para consolidar os efeitos do golpe parlamentar de dois anos antes. Em razão da condenação criminal mantida pelo órgão colegiado (TRF4), Lula seria impedido de concorrer nas eleições de outubro de 2018, porque incidiria no caso a absurda (e aprovada por unanimidade, num dos momentos mais acovardados do debate brasileiro) Lei da Ficha Limpa. Não bastava impedir Lula de concorrer, era necessário que estivesse preso, seja pela aposta de que isso o desmoralizaria como referência popular, seja porque retirar a sua voz do debate eleitoral era uma forma de impedir que ele transferisse sua popularidade a outro candidato. Por isso que além de preso, foi impedido de dar entrevistas até que seu candidato fosse derrotado.
Se a esquerda vencesse a eleição presidencial de 2018, esvaziaria de sentido toda a ofensiva iniciada por Aécio Neves após a derrota em 2014, as ilegalidades praticadas pela Lavajato, as manobras de Eduardo Cunha que levaram à derrubada de Dilma, os esforços para manter Temer vivo e aprovar reformas liberalizantes. Permitir que o candidato da esquerda vencesse obrigaria uma operação muito mais difícil: impedir a posse ou, depois, retomar o projeto golpista quase na estaca zero. Era fundamental prender Lula, razão porque o julgamento em que o STF rejeitou o HC em seu favor foi decisivo para a manutenção da “Ponte para o futuro”.
Nesse ponto entra a tuitada que ameaçou o STF. Exitosa a “intervenção militar” promovida por Villas Boas, passamos a conviver com um regime que pode, no máximo, sendo generoso, ser chamado de “Democracia Tutelada”.
A partir daí, sabemos o resultado: Lula foi preso, seu registro de candidatura foi indeferido, foi impedido de dar entrevistas (além de um regime de visitas bastante restrito, em ambos os casos contrariando a lei e lhe sonegando direitos que qualquer preso tem no Brasil); muito em consequência disso, Bolsonaro ocupou o espaço vazio deixado e se elegeu Presidente. Com ele, um número absurdo de militares (da ativa e da reserva) tomaram o poder, numa proporção que nem na Ditadura Civil-Militar (1964-1985) não havia (fala-se em mais de 3000 militares ocupando funções na Administração Pública Federal). Os principais ministérios são ocupados por militares da ativa (o da Saúde em meio a uma pandemia, a Casa Civil e a Secretaria de Governo, por onde passam inclusive as decisões políticas centrais). Vivemos, portanto, sob um Governo dos militares e sob um regime cujo funcionamento das instituições sofre permanente tutela militar.
Não adianta simplesmente lutar contra o golpe se já vivemos sob tutela militar: eles decidem o que pode ou não ser feito. Os otimistas gostam de repetir que “as instituições estão funcionando”, trazendo exemplos de pequenas contenções de medidas bolsonarianas. No entanto, caberia perceber que Bolsonaro consegue, sem aprovação dos demais poderes, consolidar boa parte de suas intenções: diversas instituições do Estado brasileiro estão sendo dissolvidas ou morrendo à míngua. Boa parte das máfias ligadas ao projeto bolsonarista obtém plenamente seus propósitos diante da dissolução dos órgãos de fiscalização sob comando do executivo federal: praticamente não temos mais fiscalização de crimes ambientais, nem defesa dos indígenas, nem defesa das relações de consumo, nem o combate ao trabalho escravo. Mesmo as polícias e demais órgãos de investigação sofrem constantes ameaças do Presidente, para que não avancem sobre sua família “e amigos”. Na prática, o Executivo opera quase tudo o que lhe interessa e, com constantes ameaças contém os demais poderes, que preferem não avançar demais, porque paira sobre nós o tuíte do General Villas Boas. Ficamos sempre nas tão malquistas notas de repúdio e nas apressadas análises que, diante de um simples “bom dia” do Presidente, se arvoram em já enxergar “sinais de moderação” logo desmentidos por nova barbaridade de que se dirá que “agora ele passou dos limites”.
Na prática, vivemos sob esse constante jogo, que permite Bolsonaro avançar. A pandemia, longe de obrigar uma mudança de rota, serviu como uma janela de oportunidade para aprofundar o caos, romper com qualquer necessidade de pactuação. Bolsonaro e seus militares escalam cada vez mais na implementação de seus propósitos, enquanto comemoramos como vitória quando uma MP absurdamente inconstitucional é rejeitada ou um ministro do STF declara repúdio à hipótese final golpista.
No meio disso, a oposição articula manifestos em defesa da democracia. Todos eles centram na defesa do que já temos diante da ameaça final. No entanto, para que possamos falar em uma restauração do Estado Democrático de Direito, não basta conseguir retirar Bolsonaro da Presidência agora ou derrotado em 2022 (“e ele aceitará entregar a Presidência?”, questionamos assustados); se faz necessário afastar do debate político as duas corporações que passaram a tutelar a política (e, portanto, tutelar a própria vontade popular): os militares e o “sistema judicial” (incluímos não apenas juízes, mas também membros do Ministério Público, advocacia pública e cortes de contas).
Algumas medidas concretas precisam compor qualquer projeto de retomada democrática, sob pena de nunca superarmos a tutela militar e judicial sobre a vontade popular: 1 – vedação da nomeação de militar da ativa em qualquer função da Administração (exceto aquelas tipicamente militares), e vedação de cedência para outros poderes; 2 – vedação de candidaturas de militares, juízes, membros do MP, policiais e membros de cortes de contas nos 3 anos após deixarem as funções; 3 – vedação total a manifestações públicas de militares sobre temas da política. As decisões tipicamente políticas (Executivo e Legislativo) devem ser tomadas a partir de um debate público livre de tutelas das corporações militar e judicial, assim como os membros dessas carreiras devem atuar liberados da tentação de agir politicamente, tomando suas decisões e agindo preocupados em cumprir as leis e a Constituição, jamais de olho na popularidade, que deve orientar apenas quem faz política.
*Márcio Medeiros Félix é advogado.
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.