País deve ter geração de órfãos da pandemia, por Ariel de Castro Alves

Diante da iminência das situações de riscos, precisamos tratar de políticas públicas, serviços e redes de proteção comunitárias que poderão acolher, proteger e amparar os milhares de órfãos da pandemia

Médicos em ação no Hospital Albert Einstein - Foto: Reprodução/YouTube
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Por Ariel de Castro Alves*

As experiências nacionais, internacionais e as informações expostas na imprensa, com base nas explicações dos especialistas em saúde e nos dados dos Sistemas de Saúde, demonstram que as principais vítimas diretas da pandemia de coronavírus não são as crianças e adolescentes e, sim, os idosos, as pessoas acometidas de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, colesterol alto, câncer, entre outras, os portadores de doenças cardíacas, além dos profissionais da saúde que estão expostos às contaminações no dia a dia de suas atuações.

Porém, as crianças e adolescentes serão as principais vítimas indiretas da pandemia, já que a letalidade atingirá seus pais, mães, avós, tios e responsáveis legais, gerando abandono e orfandade.

Conforme noticiado pelos veículos de comunicação, até o dia 26 de abril, havia 20 mortes de pessoas com menos de 19 anos por Covid-19 no país. Números que podem aumentar significativamente se as escolas públicas e privadas, com aulas suspensas há mais de um mês, retomarem as atividades, conforme tem defendido o presidente Jair Bolsonaro, inclusive afirmando erroneamente na semana passada que nenhuma criança tinha morrido de coronavírus no Brasil.

Devemos ressaltar que expor crianças e adolescentes às situações de riscos, inclusive de contaminações, viola o artigo 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que determinam que as famílias, o Estado e a sociedade devem garantir a proteção integral da infância e juventude.  

Por isso, pretendo aqui destacar que as crianças e os adolescentes, apesar de não serem as principais vítimas da letalidade da gripe gerada pela contaminação por coronavírus, certamente serão as principais vítimas de abandono e orfandade, em razão do falecimento de seus familiares, cuidadores e responsáveis legais, além das conseqüências das crises econômicas, sociais e humanitárias geradas pela pandemia no Brasil e no mundo.

Tratando de vitimização, atualmente já podemos observar o aumento dos casos de violência doméstica, maus tratos e negligências, apesar das subnotificações, conforme indicam os números computados pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, que desde o dia 18 de março já recebeu 7.563 denúncias de violações de direitos humanos, das quais as principais vítimas são crianças, idosos, mulheres e pessoas com deficiência.

Essas e outras questões de direitos infanto-juvenis geraram pronunciamentos públicos de representantes da ONU e do Unicef com relação ao cenário mundial. Devemos citar que como decorrência da ampliação da miséria e das desigualdades geradas pelas crises sociais e econômicas ocorrerá aumento das situações de trabalho infantil, inclusive na exploração sexual e no tráfico de drogas; mais fome e dificuldades relacionadas à alimentação; mais evasão escolar, crianças e jovens vivendo nas ruas, violência juvenil e crescimento dos casos de mortalidade infantil.

No momento atual, além das preocupações acima, temos que pensar e agir nos cuidados e amparo das crianças e adolescentes que estão na companhia de pais, mães ou responsáveis legais, muitas vezes avós, que estejam contaminados, internados e, alguns, que venham a falecer em razão da contaminação por Covid-19. Inclusive, levando-se em conta que a contaminação ocorre rapidamente entre pessoas que convivem e se relacionam, principalmente quando residem no mesmo local.

Um recente documento do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), intitulado Carta sobre a Garantia de Atendimento em Programas, Projetos e Serviços a Crianças e Adolescentes em Situação de Violência, do dia 17 de abril, trata da importância e prioridade dos atendimentos de crianças e adolescentes em situações de suspeitas de abusos e violência, para que os órgãos de proteção, como Conselhos Tutelares, Delegacias, Varas da Infância e Juventude e Centros de Referência, criem fluxos de atendimentos e, mesmo que estejam trabalhando em plantões ou à distância, realizem verificações e intervenções.

Também destaca a necessidade de acolhimento emergencial de crianças e adolescentes que necessitem ficar afastados dos pais, mães e responsáveis em razão de contaminações por coronavírus.

Apesar de não estar expresso no documento, nos casos de afastamento momentâneo de convívio com pais ou responsáveis sempre deve se levar em conta as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente de que o acolhimento institucional tem que ser utilizado de forma excepcional. Se a criança ou adolescente tiver o que chamamos de família estendida, como avós, tios, irmãos adultos ou outras pessoas de referência e com vínculos afetivos, como padrinhos e madrinhas, dispostos a ficarem com a responsabilidade ou guarda provisória, devem então ter preferência.

Além disso, o acolhimento familiar, com famílias previamente inscritas nas Varas da Infância e Juventude, também pode ser uma opção, já que o acolhimento institucional só deve ser aplicado em último caso, quando não existem alternativas para que as crianças ou adolescentes fiquem devidamente protegidos.

Apesar de não ser o objetivo do citado documento, ele introduz indicações sobre como poderemos amparar os possíveis órfãos da pandemia de coronavírus, o que pode se tornar uma realidade diante da rápida e incontrolável disseminação da doença e do aumento de mortes em todo país. Poderemos ter uma geração de órfãos e as famílias, os poderes públicos e toda a sociedade precisam ir se preparando para acolher, amparar e educar essas vítimas, inclusive com programas de apadrinhamento, Renda Básica, bolsas estudantis, subsídios financeiros para famílias guardiãs e vagas em serviços de acolhimento familiar e institucional.

Experiências históricas nas guerras, pandemias, epidemias e desastres evidenciam essa trágica realidade, que gera conseqüências e traumas difíceis de superar. 

Os números atuais e as projeções de contaminações e mortes, levando em conta a flexibilização do distanciamento social nas próximas semanas, conforme tem sido defendido pelo governo federal, e agora por muitos governos estaduais e municipais, diante das pressões dos setores comerciais e empresariais, devem gerar ainda maior preocupação sobre os impactos nas atuais e futuras gerações.

Hoje, temos no Brasil mais de 4,2 mil, e passamos de 61 mil pessoas contaminadas por Covid-19, sem levar em conta as subnotificações. No entanto, conforme os especialistas, o pico dos contágios deve ser verificado no início do próximo mês. Os estudos mais otimistas preveem que, se o país mantiver distanciamento social rígido, pode chegar a 44 mil mortes, mas se afrouxar o distanciamento social, pode ter mais de 500 mil mortes, conforme apontaram os pesquisadores do Imperial College de Londres.

Outras considerações conjunturais que reforçam a gravidade do problema e os sérios impactos da pandemia para a infância e juventude:

O levantamento de cenários da infância e adolescência de 2018, da Fundação Abrinq, cita que 40,2% daqueles que têm até 14 anos no Brasil vivem em situação de pobreza e, aproximadamente, 4 milhões de crianças moram em favelas.

Outros números recentes do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) apontam que temos 34 mil e 600 crianças e adolescentes nos serviços de acolhimento (abrigos) em todo país. E, ainda, números do CNJ, de 2013, revelam que mais de 5 milhões de crianças e adolescentes sequer possuem os nomes dos pais em suas certidões, o que indica que os vínculos de cuidados são exclusivamente maternos ou de outros familiares.

Na mesma linha, segundo pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), com base em dados do IBGE de 2018, 45% dos lares brasileiros são mantidos por mulheres, também denotando a ausência paterna nas configurações familiares. Outros números do IBGE, de 2015, demonstram que 80% das crianças brasileiras têm uma mulher como principal responsável. E, por fim, um estudo do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), de 2018, concluiu que 43% das pessoas com mais de 60 anos são as principais responsáveis pelo pagamento de contas e despesas das residências.

Todos esses dados evidenciam fragilidades e vulnerabilidades familiares consistentes, que podem se agravar diante do atual cenário de pandemia, reforçando a necessidade premente de pensarmos nos efeitos drásticos que impactarão a infância e juventude, tendo em vista que muitas crianças, adolescentes e jovens ficarão sem seus pais, mães, avós e responsáveis, exatamente as pessoas que os amparam, educam e sustentam.

Diante da iminência das situações de riscos, precisamos tratar de políticas públicas, serviços e redes de proteção comunitárias que poderão acolher, proteger e amparar os milhares de órfãos da pandemia, e também os atingidos pelos impactos gerados pelas crises econômicas, sociais e humanitárias advindas desse período. Certamente nas famílias pobres e em situação de vulnerabilidade os efeitos serão ainda mais devastadores.

Se perguntarmos para qualquer pai, mãe ou responsável sobre suas preocupações diante da iminência da morte, certamente os destinos e o futuro dos seus filhos são suas maiores inquietações. Com base na legislação brasileira, na ausência dos pais, mães, responsáveis ou outros familiares, a sociedade e o Estado é que devem suprir as necessidades e proteger integralmente os infantes e jovens!

*Ariel de Castro Alves é advogado, especialista em políticas de direitos humanos e segurança pública pela PUC- SP, conselheiro do Condepe-SP (Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana) e ex-conselheiro do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum