Escrito en
DEBATES
el
Por Maria do Rosário*
A Câmara dos Deputados está vivendo uma mudança radical na forma de processo legislativo desde o início da pandemia do coronavírus. É indiscutível o mérito do poder legislativo em assegurar seu funcionamento regular, o que representa um fio de estabilidade em um país cujo poder executivo é o foco de acirramento de crises.
Adaptar ritos para o funcionamento regular de poderes complexos como a Câmara e o Senado, em um país do tamanho do Brasil, exige mudar práticas consolidadas na política institucional brasileira.
Com as medidas, o plenário e sede de Brasília foram conectados a todos os parlamentares no Brasil. Onde há uma deputada ou deputado, passou a estar o poder de decisão da Câmara, pois é de lá que vem o voto parlamentar durante as sessões virtuais, tomando decisões sobre o Brasil.
Tal feito só se tornou possível pela decisão política do parlamento implementada por sua direção; pela construção da unidade entre os partidos diante da emergência sanitária; e pela atuação de um corpo técnico permanente, de Estado, capaz de manejar novas tecnologias de forma tão eficiente quanto lida com o regimento.
A reflexão no entanto, deve ser esta: o regimento.
O poder legislativo é essencial na democracia de cada país por sua capacidade de produzir mediações a partir da exaustão do debate entre contraditórios.
Seu regimento é mais do que um rol de procedimentos para organizar debate e deliberações. Ele é um instrumento da democracia utilizado para equilibrar as relações políticas e limitar o poder de maiorias, para que não se tornem discricionárias e autoritárias.
No contexto do coronavírus é não apenas aceitável, tornou-se imperativo, para a defesa da vida, que deliberações remotas sejam tomadas.
Não fosse assim, a Câmara não teria decidido sobre a renda básica emergencial de até R$ 1200 por família. Não houvesse debate, este valor não teria chegado ao montante referido, contra a proposta original do governo de míseros R$ 200 reais. Sem a deliberação remota, estados e municípios estariam mais abandonados pelo Palácio do Planalto do que se encontram, pois é o Legislativo que está assegurando decisões importantes que asseguram à unidades da federação algo que o governo quer negar.
Considerando-se o anti-governo que Bolsonaro representa, o legislativo funcionando é a principal garantia democrática do Brasil.
Ao valorizar o arrojo político e capacidade da Câmara dos Deputados de tornar-se a instituição que melhor contribui para manter algum traço institucional da cambaleante democracia brasileira, é nosso dever alertar que o uso de deliberações remotas para matérias não vinculadas à emergência do coronavírus pode vulgarizar e comprometer o instrumento.
A Câmara não pode perder seu foco. Na madrugada desta quarta-feira (15), ao votar por sistema remoto a MP 905 da carteira verde-amarela, a maioria da Câmara decidiu retirar direitos de trabalhadores e trabalhadoras.
O símbolo positivo se inverteu para o poder legislativo. A 905 nada agrega nesta hora e não trará nada bom para o futuro. Segue o tom de cantilena das reformas, que desde as malfadadas trabalhista e previdenciária, afundam mais a qualidade de vida no Brasil, diminuindo segurança, renda e salário.
É perverso que um sistema de emergência como a votação remota, formado para apoiar os mais vulneráveis, seja usado contra eles. Pior ainda para a democracia, pois neste sistema não há como fazer o uso pleno do regimento como instrumento de resistência e obstrução da minoria.
A oposição deve impedir de todas as formas que o poder de agenda do executivo, sobretudo existente nas Medidas Provisórias, seja utilizado fora da emergência do coronavírus nesta hora. Igualmente é necessário que os chefes da Câmara e Senado sejam instados a manter as votações estritamente vinculadas à emergência contra a pandemia.
Somente assim, a Câmara dos Deputados, que fez uma grande inovação ao permitir a votação remota por aplicativos pelos parlamentares e serviu de bom exemplo ao mundo, manterá a confiança que vem ampliando na sociedade.
A votação da MP 905 colocou isso em risco. Revelou que até mesmo algo seríssimo como o combate ao Coronavírus pode ser manipulado, favorecendo o interesse de poucos contra a vida de muitos. A unidade verdadeira pela vida precisa vencer o limite do lucro, do interesse estritamente patronal e da velha cantilena ultraliberal.
*Maria do Rosário é Deputada Federal (PT-RS), Mestre em Educação e Doutora em Ciência Política pela UFRGS
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum