Por Henrique Rodrigues*
Certa vez Graciliano Ramos disse que "só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida". A esteira do tempo e o transcorrer da História comprovam a frase do Velho Graça em muitos episódios, mas parece que suas palavras nunca fizeram tanto sentido como agora .
Permitam-me dar amplitude metafórica à sua afirmação. Não creio que isso ocorra apenas nas palavras deitadas num papel por aqueles que tomam a iniciativa de escrever. As ações cotidianas mostram que essa citação cabalística do autor alagoano é imensamente verdadeira.
Que diabos de vida e de sentimentos carrega essa gente detestável e orgulhosa de seu mau-caratismo, que ironiza os mortos de uma epidemia e esperneia nas redes sociais para insuflar a loucura de mandar às ruas a população, onde morrerão da peste?
O pior é que esse sebo humano já constitui um tecido gigantesco de nossa sociedade. São frações significativas, estão por todos os lados e convivem conosco nas várias esferas de nosso dia a dia, seja no trabalho, na família, na vizinhança, nos círculos sociais. Uma chaga intestinal.
Não têm pudores e exalam calhordice à luz do dia, na frente de todos, "a las cinco en punto de la tarde", como o toureiro morto em público de García Lorca, eternizado na macabra 'La cogida y la muerte'.
Falo por mim, mas me atrevo a dizer que todos estamos assustados com esse pesadelo de conviver com uma crosta tão rasa e nojenta da humanidade, de cariz sociopática, que brotou como água da mina no Brasil.
Onde esse povo esteve durante todo esse tempo? Pelas barbas do profeta! Esse entulho da maldade realmente estava na mesa ao lado, no trabalho? No elevador dando bom dia ao sairmos de casa? Assoprando nossas velinhas de aniversário e desejando felicidades uma vez por ano?
Como fomos capazes de viver misturados a tanta mesquinhez, por tantos anos, sem nunca nos darmos conta de que centenas, milhares, milhões de sociopatas gargalhavam de nossa piadas, compartilhavam de nossa cerveja, davam tapinha nas costas na final do futebol, ou nos abraçavam ao nos encontrar na rua?
A cena de uma pequena multidão dançando e se esbaldando com um simulacro de caixão, debochando dos milhares de brasileiros mortos pela Covid-19, em plena Avenida Paulista, deixou-me perturbado. Carros impedindo propositalmente a passagem de ambulâncias numa região cercada de grandes hospitais, com pessoas gritando ensandecidas, em êxtase, vibrando a cada paciente que não podia ser socorrido.
Noutro episódio, uma figura tosca e obtusa da putrefata tevê aberta brasileira pediu a construção de campos de concentração para nos livrarmos dos contaminados pelo coronavírus, ao vivo.
Tudo isso estremece demais, atinge nossa saúde mental e torna a tarefa de assimilar esse turbilhão de tragédias ainda mais difícil.
Parece que houve um gatilho. É estranho, simplista, mas há alguma relação nisso.
A partir do momento que alguém abjeto, descontrolado, misógino, racista, homofóbico e mau-caráter, incontestavelmente execrável, que assume em público admirar a tortura de seres humanos, ganha espaço nos meios de comunicação e passa a ser visto como um modelo a ser seguido (que insanidade!), uma parcela gigante das pessoas sente-se livre e desavergonhada para assumir posições absolutamente incompatíveis com os marcos civilizatórios conquistados há séculos pela humanidade.
São bárbaros. Na sentido mais pejorativo do vocábulo. Não é possível estabelecer um diálogo. As palavras saem com um ódio sulfúrico de suas bocas, não permitem que o outro fale, rosnam, fazem apelos intermitentes à violência e ameaçam bater o tempo todo.
Estabelecem uma leitura psicodélica da História, que mistura visões distorcidas, conclusões enviesadas, mentiras descaradas e muita ignorância, e usam isso como argumentos para uma visão de mundo ridícula.
Não há qualquer possibilidade, nem a mais remota delas, de que enxerguem as imbecilidades grotescas que defendem, ou que façam um exame de consciência em relação ao quanto estão sendo repugnantes.
Enquanto o mundo luta desesperadamente contra o maior desafio visto nos últimos cem anos, o Brasil tem um problema adicional, que é criar um agente neutralizante para a vilania e o ódio das almas sebosas que nos infectaram.
Numa situação assim, jamais alguém em sã consciência lembraria de citar, ou concordaria, com Eduardo Cunha, um notório bandido, exceto quanto a sua demagógica exortação:
"Que Deus tenha misericórdia dessa nação!
*Henrique Rodrigues é jornalista e professor de Literatura Brasileira