Por Mauro Oddo Nogueira* e Sandro Sacchet de Carvalho**
Parece que finalmente foi superado o dilema entre a opção de salvar-se a economia ou salvar-se a população. É quase consenso entre os economistas de todo o mundo que o debate acerca da garantia do “equilíbrio fiscal” ficou para depois. Para quando tivermos sobrevivido – as pessoas e a economia, uma vez que esta é um produto daquelas e sem elas não existe – e pudermos voltar os olhos para o futuro.
No momento, trata-se de salvar o presente. Porém, parece que alguns formuladores de políticas públicas ainda não se deram conta disso e, seja lá por que motivações, continuam renitentes em tomar as medidas econômicas que permitirão que atravessemos com o menor dano possível essa pandemia globalizada que o destino atravessou no trilho da globalização econômica.
Muitos cidadãos encontram-se em uma situação de justificado pânico frente ao chamado lock down da economia. E têm toda a razão! Com a vida econômica em quarentena, a fome e o desespero ameaçam bater à porta da maioria da população. Aliás, a pandemia do COVID-19 está servindo para isso, para lembrar-nos, conforme dito assim, que a economia é produzida por pessoas e quando estas entram em quarentena, a vida econômica as acompanha.
A grande questão é que, mais uma vez, estamos sendo colocados diante de um falso dilema, no qual somente duas alternativas estão sendo postas na mesa: ou, com toda a certeza, morremos de fome, ou retomamos nosso dia a dia e nos expomos em nossos postos de trabalho e nos transportes lotados a um incerto risco de morrer pelo vírus.
A falha nesse raciocínio – e é melhor entende-la como falha, e não como intencional – é de que nãos são apenas essas duas as alternativas possíveis. Há uma terceira possibilidade e é ela que vem sendo adotada na maior parte dos países. Até mesmo aqueles que não a consideravam inicialmente começam a rever suas posições.
Restam poucas dúvidas acerca da catástrofe socioeconômica a que nos levará a manutenção do rumo que o Brasil está seguindo no momento. No Brasil, pouco mais de 40% dos trabalhadores são informais, seja como autônomos, seja como empregados sem vínculos contratuais de trabalho. Estamos falando, portanto, de mais de 40 milhões de trabalhadores.
Observe-se que não há dúvidas de que praticamente a totalidade dos empregados informais atuam em empresas de pequeno porte. Dos outros 60% – os trabalhadores formais – aproximadamente 27 milhões são também autônomos, trabalhadores doméstico e proprietários ou empregados de micro e pequenas empresas.
Assim, temos que algo em torno de 70% da massa de trabalhadores do país, ou seja, quase 70 milhões de pessoas, atuam nas chamadas MPEs, formais ou informais. São exatamente essas empresas (e profissionais autônomos), em função das atividades econômicas em que se concentram, que estão sendo paralisadas pela pandemia do COVID-19.
É importante repetir a palavra: paralisadas. Isso significa dizer que não estão faturando nem um centavo ou, quando muito, uma parte ínfima de seu faturamento usual. E a realidade que é a imensa maioria dessas “unidades produtivas” não tem folego para sobrevier sequer a um mês nessas condições. Isso se traduz incapacidade de honrar compromisso, principalmente os salários, em falências em cascata e a desemprego em massa, produzindo a destruição das cadeias produtivas e um colapso social sem precedentes em nossa história.
Até aqui, tratamos daqueles que estão inseridos no aparato produtivo do país. Mas nossa conjuntura atual (pré-pandemia) acrescenta a essa vulnerabilidade os 12 milhões de desempregados e os 5 milhões dos chamados desalentados, que são aqueles que já desistiram de procurar emprego e deixam de ser contabilizados nas estatísticas de desemprego. Esses 17 milhões de trabalhadores sobrevivem apoiados na rede de proteção oferecida por aqueles que estão ocupados.
Em outras palavras, a “epidemia viral” nos coloca diante da ameaça de uma “epidemia socioeconômica” e precisamos entender que esta se comporta da mesma maneira que aquela: uma reação em cascata, na qual um contamina o outro – neste caso, da cadeia produtiva – em progressão geométrica e medidas tomadas somente quando a catástrofe já é dá sinais de concretização já são absolutamente tardias. As consequências disso são efetivamente inimagináveis.
É bem verdade que até o momento os governos nacional e subnacionais têm feito muito no sentido de tentar evitar esse colapso. Inúmeras medidas foram tomadas nos últimos dias e outras tantas estão em fase de gestação. Mas a realidade é que, em que pese sua ampla adequação, elas são insuficientes frente às dimensões do quadro.
A pergunta que fica, então, é: o que fazer? Voltamos todos ao trabalho? Não. Mesmo porque, se optarmos por isso e a doença se propagar como os cientistas afirmam que acontecerá, a atividade econômica não terá como se sustentar. Nossa opção, nesse caso, terá sido a fusão dos dois cenários de catástrofe, teremos unido a catástrofe socioeconômica à catástrofe humana.
É preciso, sim, radicalizar. Radicalizar do mesmo modo em que se está radicalizando no mundo todo as medidas de saúde pública na tentativa de conter a catástrofe. Radicalizar em medidas que sejam capazes de sustentar os elos econômicos enquanto se tenta sustentar as vidas em jogo.
A boa notícia é que é está a nosso alcance fazê-lo.
O anúncio de R$ 600 para autônomos e informais, assim como o crédito que acaba de ser oferecido às empresas de pequeno porte, são um passo importante, mas seus valores são insuficientes para fazer frente ao problema, além de estarem com pelo menos duas semanas de atraso, o que poderá custar muito mais caro na contenção dessa pandemia.
Além disso, o socorro ora oferecido às pequenas empresas deixa de fora mais de 6,5 milhões de microempresas. Demora igual estamos observando na decisão da suspensão do contrato de trabalho com a antecipação do seguro desemprego.
O Banco Central tem atuado para prover liquidez aos mercados financeiros, mas tem sido amplamente divulgado que os bancos pouco emprestam e com juros mais altos. É necessário uma intervenção maior seja através dos bancos públicos ou garantindo parte dos empréstimos aos bancos privados (com juros menores, evidentemente).
Para a preservação das MPEs formais, é imprescindível o seguinte conjunto de medidas de socorro, todas elas condicionadas à manutenção dos empregos e ao efetivo pagamento dos salários nas que continuam em operação:
- Diferimento e parcelamento de todos os impostos e taxas nas três esferas da federação;
- Diferimento e parcelamento de todos os débitos de serviços públicos para pessoas jurídicas (luz, água, telefone, internet etc.);
- Concessão de empréstimo para todas as MPEs durante quatro meses (prazo a ser reavaliado em função da evolução da epidemia) no valor médio de 60% de seu faturamento médio mensal com juros zero, carência de um ano e 36 meses de amortização. Esse percentual deve ser variável em função da atividade econômica;
Para os autônomos formais (MEIs) e o universo informal da economia, uma única medida é capaz de garantir a sobrevivência:
- Elevação do auxílio agora oferecido de R$ 600 para 1 salário mínimo por um período de quatro meses (prazo a ser reavaliado) MEIs e informais. A condição de informal deverá poder ser provada pelos modos mais simplificados possíveis.
É fundamental que todos esses processos sejam o mais simplificados possível, dada sua urgência.
As medidas sugeridas para as empresas caracterizam-se por empréstimos. Assim sendo, seu custo para os cofres públicos são tão somente o custo de oportunidade da Selic para o prazo de amortização previsto. No caso dos empréstimos, o montante concedido seria algo da ordem de 450 bilhões de Reais. Já para os autônomos e informais, o valor seria integralmente arcado pelo Tesouro, atingindo a cifra de 210 bilhões.
As fontes de financiamento disso tudo? Essa é uma questão a ser debatida depois de superada a ameaça do caos.
Boa parte das medidas propostas estão sendo aplicadas por outros países, o custo está sendo imenso, o pacote dos EUA atingirá US$ 2 trilhões. Na Europa, além de medidas de apoio a empresas com créditos e postergação de pagamentos de impostos (a Suécia postergou por 1 ano ao custo de 6% do PIB), em vários países têm-se oferecido subsídios de renda para trabalhadores afetados.
A União Européia suspendeu momentaneamente suas regras fiscais de limite do déficit e da relação dívida/PIB. Os custos dos pacotes europeus ultrapassam os 10% do PIB. Canadá e Austrália também estão implantando imensos pacotes de ajuda, o australiano alcança 9,7% d PIB. Aqui na América Latina, já faz uma semana que o Chile também lançou medidas de ajuda econômica que atingem 5% do PIB, quando contavam com apenas cerca de 500 casos.
Os países estão tendo que escolher entre salvar o equilíbrio fiscal ou a vida. A maioria está escolhendo a vida. Já por aqui, ao que parece, a escolha é o equilíbrio. Deseja-se o caos. Discute-se o corte dos salários dos servidores públicos, covardemente se aproveitando da crise para atingir outros objetivos. Uma medida que agravaria a recessão que se instalará e colocará em risco a prestação de serviços públicos no momento em que eles são, mais do que nunca, imprescindíveis para a superação dessa crise.
O aumento do déficit fiscal será inevitável, mesmo que se relaxasse agora as medidas de quarentena, estas seriam retomadas à medida que aumentasse a pilha de cadáveres, e a um custo muito maior. O aumento do desemprego também inevitável. De fato, a única coisa que podemos evitar no momento são milhares de mortes. Essa é a conclusão fundamental que a maioria dos países já alcançaram, e eles não estão dispostos a pagar para ver, ou melhor dizendo, estão dispostos a pagar para não ver.
Agora resta ainda a questão de quem vai arcar com esse custo. Como a imensa maioria não tem condições de se sustentar sem trabalhar do que por alguns dias, será necessário manter-lhes o sustento sem que elas trabalhem, ou seja, elas receberão um valor que não foi criado, não é valor novo. Se esse valor for coberto por emissão de moeda (excelente oportunidade para testar a Moderna Teoria Monetária) – isso irá gerar inflação, e depreciará o valor de todos os ativos de maneira geral, de forma que o custo seria arcado por todos, alguns mais outros menos dependendo de quem conseguir proteger seus ativos da inflação.
Entretanto nossa inflação atual é baixa, a economia está desindexada e a “cultura inflacionária” já foi superada. Essa inflação poderá ser debelada a médio prazo e seu custo será o “imposto social” a ser pago por todos pela garantia do tecido econômico e da ordem social. Mas deve-se levar em consideração que o futuro aumento de juros para controlar a inflação terá impactos negativos na dívida pública.
Se esse valor for coberto diretamente por nova dívida, transfere-se a criação desse valor para gerações futuras e para aqueles que arcarão com o futuro arrocho fiscal. Dependendo do tamanho a ser financiado, particularmente nos dias atuais nos quais a produtividade se encontra estagnada há muito tempo no mundo inteiro, as dívidas podem tornar-se impagáveis na medida em que será impossível impor o seu custo sobre grupos específicos. A monetização da dívida pode muito bem ser inevitável nesse cenário também.
Resta a alternativa, que numa sociedade racional seria a mais óbvia, de que esse valor a ser transferido não seja fictício (monetização), nem hipoteca de valor futuro (dívida), mas sim por valor já existente. Será inevitável discutir que àqueles com melhores condições arquem com maiores sacrifícios, ou seja, deve-se propor: tributação de grandes fortunas; tributação de dividendos (só Brasil e Estônia não o fazem); aumento das alíquotas de Imposto de Renda das pessoas jurídicas; eliminação dos super salários nos três Poderes; revisão dos subsídios concedidos às empresas, condicionando aqueles que remanescerem a contrapartidas como metas de crescimento ou emprego, além de prazos definidos para sua supressão.
Existe uma imensa quantidade de valor estocada nas contas bancárias dos ultra-ricos. Como bem demonstrou Piketty, a 2ª guerra mundial foi um dos fatores que possibilitou uma melhor distribuição de renda que acompanhou os ‘30 anos gloriosos’. Se nesse momento de crise humanitária em escala global não se conseguir avançar nessas questões, será inútil continuar soando o alarme de incêndio, o fogo já estaria incontrolável.
Bem, vamos admitir que estejamos sendo alarmistas, que isso todo o caos acabe não acontecendo. Que a suspensão da quarentena teria sido a melhor alternativa. Nesse caso, preocupamo-nos à toa e acabamos por comprometer a “saúde financeira” de nossa economia por algum tempo. Verdade. Mas alguém pode assegurar isso? Por outro lado, e se o prognóstico consensual entre os cientistas estiver correto e não for adequadamente mitigado, quem será capaz de lidar com a convulsão social e o colapso econômico dela decorrente que podem eclodir? Para aqueles que gostam dos modelos matemáticos, estamos diante de um caso clássico de Minimax (Mínimo Máximo Arrependimento) em decisões sob incerteza, que é o que nos move a, por exemplo, fazermos seguro de nossas casas e automóveis.
Realmente o ponto agora é a escolha entre as pessoas ou a economia, ou "a bolsa ou a vida". Mas, de modo particular, essa crise mostra quão grave são os problemas que a precarização do mercado de trabalho acarreta, como empreendedorismo é uma falácia, como a noção de remunerar o trabalhador apenas pelo período que ele "presta o serviço ao empregador", que está presente em todas as reformas trabalhistas pelo mundo, não é sustentável. Isso se torna evidente porque afeta-se todos ao mesmo tempo, mas escolhe-se ignorar que os trabalhadores precários estão sujeitos a esse tipo de crise permanentemente. De modo mais geral, se esse falso dilema a "bolsa ou a vida" não puder ser equacionado apenas demonstra que as economias de mercado não são sustentáveis, essa é apenas uma crise entre muitas que estão por vir.
*Mauro Oddo Nogueira é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), engenheiro e administrador. Doutor pela Coppe/UFRJ e autor do livro “Um pirilampo no porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil”
**Sandro Sacchet de Carvalho é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), economista e Doutor pela PUC-Rio
As opiniões aqui expressas são de caráter eminentemente pessoais, não espelhando a posição das instituições às quais os autores estão vinculados