Por Professora Rosa Neide *
A Câmara dos Deputados viveu na madrugada do último dia 10 de dezembro um dos momentos mais baixos da sua história. O governo Bolsonaro, junto com seus princípios e métodos, atravessou a praça e, definitivamente, chegou ao Parlamento.
Um dos valores centrais para o cotidiano parlamentar, que, orgulhosamente, resistiu à ditadura, às disputas de poder e aos mais contendentes debates ideológicos, foi o da “palavra”. Acordo proposto e negociado é acordo cumprido. É uma questão de dignidade, de honradez, de lealdade e, claro, de confiança.
Nos acostumamos a ver palavrões e xingamentos em discussões acaloradas no Plenário, algumas vezes com ameaças de uso da força física, mas, depois de negociado um acordo, as partes o cumprem. Está acima dos partidos e das pressões.
O que aconteceu na Câmara no último dia 10 foi mais grave do que não cumprir a palavra. Livre e deliberadamente, os partidos da base do governo (PTB, PL, NOVO) sentaram-se e negociaram com a oposição a retirada de alguns pontos de um projeto de lei. A intensão era construir um texto consensual que pudesse ser levado ao Plenário para votação e aprovação. Era um acordo de conteúdo e de resultado, não de procedimento. O texto foi, então, consensuado e a palavra, dada. O acordo, no entanto, era uma farsa, uma emboscada.
Assim que o projeto foi colocado em votação, os pontos consensualmente retirados foram reapresentados na forma de emendas pelos partidos da base de Bolsonaro.
Neste período excepcional da vida brasileira, com o isolamento social e a adoção de sessões remotas, a Presidência da Câmara definiu com os líderes partidários que somente projetos para os quais houvesse acordo poderiam ir à votação. Foi um ajuste necessário dadas as limitações naturalmente impostas pelas votações virtuais e pelo distanciamento físico entre os parlamentares.
Tendo isso em mente, ardilosamente, os partidos que apoiam o Presidente da República fizeram de conta que aceitavam as mudanças propostas, apenas para dar a impressão de que estavam honrando outra palavra empenhada – a de votar, apenas, projetos acordados. De forma arquitetada, a base de sustentação do governo caminhava para a violação não de um, mas de dois acordos.
O tema era extremamente relevante, a regulamentação do novo Fundeb, o Fundo da Educação que transfere recursos para os estados e municípios, para atender os alunos da rede pública.
Após dias de exaustivas discussões, foi construído um acordo em torno do texto que seria levado ao Plenário. O clima era de vitória, de comemoração. Havia a euforia de, finalmente, se poder votar um projeto que se arrastava há meses, mas que era fundamental para a educação pública brasileira.
Com o acordo selado, o projeto foi submetido à votação do Plenário. O texto acordado foi apresentado pelo relator, mas, aos poucos, começaram a aparecer emendas que devolviam ao texto tudo que lhe havia sido retirado.
Quando a oposição se deu conta da armadilha em que caíra, já não havia mais possibilidade de fazer uso do “kit obstrução”, um conjunto de instrumentos regimentais destinados a prolongar as discussões e a adiar a conclusão da votação. Com uma quantidade enorme de deputados acompanhando a sessão, só restou à oposição votar “não” a cada votação que, uma a uma, desmontava o texto que se prometera aprovar.
No meio da noite, os artigos propostos pelos partidos da base do Governo ajudaram a formar um texto completamente diferente do que havia sido acordado e praticamente similar ao texto que se queria evitar, permeado de inconstitucionalidades e de menosprezo pelo ensino público.
Na calada da noite, a oposição e os que defendem fortalecimento da educação pública caíram na emboscada e viram-se, duramente traídos. À luz do dia, a confiança “na palavra” revelou-se a grande vítima da noite.
Lamentavelmente aprendemos de forma dura que não há como confiar na palavra acordada pela base aliada de Bolsonaro. Lutaremos até o fim no Senado e se possível na Justiça, para devolver os mais de R$ 4 bilhões que os partidos do presidente desviaram da Escola Pública para irrigar os cofres da Escola Privada.
*Professora Rosa Neide é deputada federal (PT-MT)
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum