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Por Rafael Moreira*
De maneira geral, os primeiros seis meses de um mandato presidencial são conhecidos como o seu período de “lua de mel”, no qual o presidente eleito, fazendo uso do capital político adquirido nas eleições, dá início a sua agenda política e econômica podendo contar com aprovação popular e sustentação da classe política. No caso do governo Bolsonaro e seu partido, o PSL, confirmam-se as análises que apontavam que sua “lua de mel” seria curta. Sua popularidade vem caindo desde sua posse, e o presidente eleito até o momento não apresentou capacidade de articulação para montar uma coalizão partidária que o sustente no Congresso Nacional.
Bolsonaro chegou ao poder com uma coalizão de forças heterogênea, com agendas que chegam mesmo a ser contraditórias entre si e que se unificam apenas pelo seu sentimento “antipetista”. As tensões entre a bancada evangélica e a bancada ruralista quanto à mudança da embaixada brasileira em Israel foram a primeira evidência nesse sentido, já no início do seu mandato, e seriam um primeiro sinal das crises que estariam por vir. Tal heterogeneidade é um dos fatores responsáveis por seu governo ter se mostrado extremamente frágil até o momento. Essa fragilidade, somada à completa inabilidade política de sua principal liderança – ainda que tenha atuado por quase 30 anos como parlamentar na Câmara dos Deputados – foram rapidamente notadas por muitos de seus aliados de primeira hora, que pouco a pouco vão se dando conta do governo que ajudaram a eleger e passam a se afastar dele, numa tardia tentativa de se eximir de culpa pelo atual cenário político e econômico.
Assim, as crises iniciadas já no seu primeiro mês de governo adquiriram novos patamares e se somaram às expectativas econômicas em declínio, dando início a um processo de retroalimentação entre si. Com isso, a aprovação popular de Bolsonaro segue sendo minada, desenhando cenários futuros que apresentam alto grau de imprevisibilidade quanto à conclusão do seu mandato.
No Congresso
No Congresso Nacional, desde as eleições do ano passado o PSL se mostrava como uma nova versão do PRN de Fernando Collor de Mello, e a cada nova pauta colocada em votação esse diagnóstico se confirma.
Para aqueles que não se lembram (ou não conhecem a história), nas eleições de 1989, Collor, que já tinha uma longa trajetória na política brasileira, criou um partido “para chamar de seu”, o PRN, para assim poder disputar as eleições presidenciais daquele ano. Vitorioso, o seu partido elegeu uma grande bancada nas eleições de 1990, que serviria para dar-lhe sustentação no Poder Legislativo, segundo o arranjo institucional hoje já familiar denominado “presidencialismo de coalizão". Porém, com baixa capacidade de governabilidade (a nova Constituição havia sido recentemente aprovada, o que o tornava o primeiro presidente a ter de lidar com a dinâmica desse arranjo), teve que recorrer constantemente às Medidas Provisórias, e ao final seu governo caiu por meio do processo de impeachment de 1992. Com isso seu partido minguou e muitos dos que haviam sido eleitos pelo PRN em 1990 deixaram a legenda, demonstrando pouco (ou nenhum) compromisso com o partido.
No caso do PSL e de Bolsonaro, o partido já existia anteriormente, mas sempre havia cumprido um papel marginal no nosso sistema partidário, funcionando como mais um “partido de aluguel” do campo da direita, abrindo lugar para qualquer um que quisesse postular uma candidatura a algum cargo público. Com a entrada do presidenciável no partido após longos meses de idas e vindas em outras legendas, a sigla “inchou” rapidamente com novas filiações, sendo impulsionada por aspirantes a políticos(as) interessados em surfar na onda bolsonarista enquanto ela estivesse em ascensão. Meses depois, descobriu-se que muitas das candidaturas apresentadas pelo partido na verdade eram “laranjas”, mas que contribuíram para que o partido superasse a cláusula de barreira e obtivesse a maior bancada da Câmara dos Deputados.
Entretanto, com uma bancada “eclética” formada por um deputado-príncipe, youtubers, pastores evangélicos, policiais, empresários, políticos profissionais, militares, um ex-ator pornô, entre outras figuras caricatas que dão cara à extrema direita brasileira, a atuação parlamentar da legenda cada vez mais demonstra sua completa incapacidade de ser um partido orgânico e coeso. Suas lideranças demonstram de maneira pública suas divergências constantemente e a inexperiência de seus parlamentares colocados em cargos-chave (o líder do governo na Câmara dos Deputados, deputado Major Vitor Hugo, exerce seu primeiro mandato na Casa, assim como o presidente da CCJ, o deputado Felipe Francischini) contribui para esse cenário. O resultado disso tem sido um governo que não consegue construir uma base de sustentação legislativa sólida e estável o suficiente para aprovar suas agendas política e econômica, e que tem buscado governar fazendo uso de Decretos Presidenciais ? tal como Collor havia feito em relação às Medidas Provisórias durante seu mandato ? e correndo o risco de ter suas medidas barradas pelo STF devido a sua inconstitucionalidade.
Cabe por fim apontar que, no âmbito legislativo, o único partido que tem atuado de maneira mais alinhada ao governo, mostrando ser mais “bolsonarista” que o próprio partido do presidente, tem sido o partido NOVO, que conta com um Ministério (o investigado Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles) e que já fechou questão em apoio à proposta de Reforma da Previdência. Não à toa, em artigo anterior aqui na própria Revista Fórum, rotulei o partido como representante de um “bolsonarismo gourmet”, o que rapidamente se confirmou.
Nas ruas
Para além da esfera institucional, Bolsonaro também enfrenta cenário adverso nas ruas. Depois de anunciar um corte no orçamento de três universidades federais e receber críticas de todo o meio acadêmico e científico brasileiro em relação à medida, o governo decidiu expandir o corte a todos os institutos e universidades federais, tentando justificá-lo pela “balbúrdia” produzida por essas mesmas universidades e argumentando que os recursos economizados seriam investidos na educação básica. Após a justificativa ter se mostrado inverídica, com dados que revelaram que os cortes se estenderam a todo o sistema educacional público brasileiro, Bolsonaro teve que enfrentar as primeiras grandes manifestações em oposição a sua condição de governo.
No último dia 15 de maio, em mais de 160 cidades por todo o país ocorreram protestos, que serviram inclusive para que o presidente mais uma vez demonstrasse sua completa inabilidade política, ao chamar os manifestantes de “idiotas úteis”. Novas manifestações já foram convocadas para o dia 30 de maio, que levaram os setores de extrema-direita que apoiam o governo a também convocarem manifestações em sua defesa, agendadas para o dia 26.
Os organizadores, porém, têm encontrado dificuldades para encontrar uma narrativa coesa que leve às ruas parcelas da população para além dos seus setores mais à direita e que se sintam à vontade para defender o atual governo e a sua agenda de maneira pública. Num primeiro momento, pautas autoritárias foram colocadas como mote central para a convocação das manifestações, como o “fechamento do Congresso e do STF”, o que levou a um racha nos movimentos de direita, afastando algumas organizações da construção dos atos, como o MBL e o Vem pra Rua. Agora, pautas mais genéricas têm sido colocadas para tentar atrair mais público, como “o combate à corrupção”, “em defesa da Operação Lava-Jato”, ou o combate ao bloco conhecido como “centrão”, na tentativa de culpá-lo pelas dificuldades do presidente em aprovar sua agenda no Congresso. Porém, o governo ainda assim terá dificuldades para atrair público baseando-se nessas justificativas, dadas as investigações que avançam contra Flávio Bolsonaro e sua família em relação ao seu crescimento patrimonial e o fato de Bolsonaro, apesar de todo seu discurso contra a classe política e o “centrão”, ter feito parte do “baixo clero” da Câmara dos Deputados desde sua primeira eleição para aquela Casa, em 1990.
A dificuldade de convocação do público para as manifestações também é um reflexo da queda na aprovação do presidente. Seu apoio parece estar restrito a um “núcleo duro” do Bolsonarismo, cujo caráter é evidente conforme desagregamos os dados de sua aprovação: ela é maior entre os homens, entre os evangélicos, entre os moradores da região Sudeste e numa faixa de renda de 5 a 10 salários mínimos. Assim, pode-se até supor quais serão as cidades onde haverá maior adesão às manifestações em defesa do seu governo e qual será o perfil dos manifestantes presentes nelas.
Futuro incerto
Com menos de seis meses de governo, muitos analistas já apontam a possibilidade de uma eventual interrupção do governo Bolsonaro antes do cumprimento de seus quatro anos de mandato, seja pela via da renúncia, seja por meio de um eventual processo de impeachment. A carta anônima divulgada pelo presidente há poucos dias, que guarda muitas semelhanças com a carta-renúncia do ex-presidente Jânio Quadros, de 1961, dá força a essas avaliações, parecendo ser um apelo para que haja maior adesão às manifestações em sua defesa no próximo fim de semana. Não à toa, desde o primeiro momento do seu governo, o vice-presidente Hamilton Mourão tem procurado descolar sua imagem de Bolsonaro.
Se durante a campanha (e durante toda sua trajetória) Mourão sempre esteve à direita de Bolsonaro, clamando mais de uma vez por uma intervenção militar para “resolver nossa crise política”, o vice-presidente, uma vez empossado, procurou rapidamente moderar o seu discurso. Temendo que um eventual naufrágio do governo contaminasse a credibilidade que as Forças Armadas ainda gozam na população brasileira, Mourão tem buscado se colocar como uma alternativa de poder ao presidente, construindo uma imagem ponderada e estabelecendo canais de diálogo com a imprensa que são rejeitados por Bolsonaro. A estratégia provavelmente também passa pela avaliação do general quanto ao fato de poucos Presidentes da República em nossa história republicana terem concluído o mandato para o qual foram eleitos. Sendo assim, não seria nada espantoso imaginar que o vice-presidente goze de maior aceitação popular do que o atual presidente, conquistando fatias do eleitorado de centro ou de ex-bolsonaristas arrependidos, o que contribuiria para uma maior aceitação popular de um eventual impeachment.
Porém, para uma eventual saída do presidente por essa via, cabe lembrar que seriam necessários pelo menos três fatores dentre vários: 1. que o ocupante do cargo de Presidente da Câmara dos Deputados, que é quem detém esta prerrogativa, acate algum pedido nesse sentido e dê início ao processo – relembremos Eduardo Cunha; 2. que haja pressão popular suficiente sobre a classe política para condicionar uma votação contrária ao Presidente e 3. que a imprensa hegemônica apoie a pauta.
Nesse sentido, a relação entre Rodrigo Maia e Jair Bolsonaro tem sido cada vez pior e apresentado um constante clima de desconfiança mútua, o que contemplaria o primeiro fator que elencamos. Quanto ao segundo fator, é possível que as manifestações impulsionadas pelo movimento estudantil contra os cortes na educação se tornem o gatilho para uma mobilização popular mais ampla, que tenha como pauta específica o impeachment, levando à necessária pressão social em prol da pauta. E, por fim, os três principais jornais do Brasil ? O Globo, o Estadão e a Folha de S. Paulo ? já começam a apresentar editoriais contrários ao Presidente, apontando o seu isolamento político. Nesse sentido, os três fatores parecem estar pouco a pouco ganhando força para desenhar um eventual cenário de impeachment, que pode ou não se confirmar, afinal, cabe lembrar que um impeachment é sempre um processo político, e não um processo técnico/jurídico, tal como nossa história política recente mais uma vez nos lembrou.
*Doutor e Mestre em Ciência Política pela USP. Contato: Facebook.com/rafaelpolitica