Originado no Japão feudal do século XV, o kintsugi surgiu da necessidade de consertar cerâmicas quebradas de maneira estética e duradoura. A prática consiste em colar os pedaços com laca urushi e finalizar as rachaduras com pó de ouro, criando um contraste visual que valoriza, em vez de esconder, as fraturas. O que começou como técnica artesanal evoluiu para uma filosofia de vida: as cicatrizes não são sinais de fraqueza, mas registros de uma história de superação.
Esse simbolismo encontrou eco em diferentes contextos contemporâneos. Em 2020, durante a celebração do Dia Internacional da Paz, o secretário-geral da ONU, António Guterres, utilizou o kintsugi como metáfora para a reconstrução de um mundo marcado por desigualdades e crises. Para ele, não basta restaurar o que foi rompido — é preciso sair da adversidade mais forte e consciente. No ano seguinte, Andrew Parsons, presidente do Comitê Paralímpico Internacional, retomou a imagem em seu discurso de encerramento das Paralimpíadas de Tóquio, afirmando que o kintsugi representa a beleza da diversidade humana e da valorização das diferenças.
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No Japão, o conceito também está ligado ao wabi-sabi, filosofia estética que encontra beleza na imperfeição e no efêmero. Ligado à ideia de mottainai — o princípio de que nada deve ser desperdiçado —, o kintsugi reflete uma visão ecológica e espiritual, baseada no respeito pela matéria, pelo tempo e pelas marcas da vida.
Rachaduras visíveis, curas internas
Além da arte, o kintsugi ganhou destaque como metáfora psicológica. Em tempos de ansiedade, frustração e pressão por perfeição, ele oferece um contraponto poderoso: é possível abraçar nossas falhas sem vergonha. O jornalista alemão Adam Soboczynski observa que vivemos em uma cultura que nos ensina a esconder as emoções, mesmo quando estamos em ruínas. Para a escritora Joan Didion, o verdadeiro amor próprio é a chave para resistir — uma força interna que não depende da aprovação externa, mas da aceitação de quem se é.
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Já o filósofo Josep Maria Esquirol defende que a imaginação e a memória são instrumentos da alma resiliente. E Franz Kafka via na paciência — também essencial no processo do kintsugi, já que a resina pode levar semanas para secar — a única forma de superação duradoura. O autor recomendava absorver tudo internamente e crescer a partir das experiências dolorosas.
A prática tem ganhado espaço fora do Japão, tanto na arte quanto na saúde mental. Autores como Candice Kumai difundem o kintsugi como ferramenta de autoconhecimento, e kits de reparo são usados em oficinas terapêuticas e sessões de mindfulness. Museus, escolas de design e centros culturais promovem experiências com o kintsugi como forma de reconectar indivíduos com sua própria vulnerabilidade.
Aceitar as rachaduras e reconstruir com elas não é apenas um gesto estético — é político, emocional e existencial. Em um mundo fragmentado por crises pessoais e coletivas, o kintsugi propõe uma alternativa simbólica: não apagar o dano, mas transformá-lo em ouro.