CINEMA

Estreia: Filme baiano traz a cegueira como metáfora para o Brasil de Bolsonaro

Diretor do premiado “Saudade Fez Morada Aqui Dentro” comenta o filme que pode representar o Brasil no Oscar

Filme foi selecionado pela Academia Brasileira como um dos seis finalistas para representar o Brasil no OscarCréditos: Divulgação
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Filmado e ambientado no interior da Bahia, o filme “Saudade Fez Morada Aqui Dentro” (Cajuína Audiovisual), do coletivo Plano 3 Filmes, parte da história de um adolescente que, aos poucos, vai ficando cego, para criar uma metáfora da resistência.

Filmado com jovens não-atores do sertão, o filme nasceu como metáfora da cegueira no Brasil de Bolsonaro.

“Em ‘Saudade’, vivenciamos o espírito dessa resistência sertaneja no personagem que busca encontrar luz mesmo estando dentro da escuridão”, explica o diretor Haroldo Borges.

Figurando na seleta lista da Academia Brasileira de seis finalistas para representar o Brasil no Oscar, o filme estreia nas salas de cinemas nesta quinta-feira, 19 de setembro, em salas de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Vitória da Conquista, Fortaleza, Maceió, Recife, Florianópolis e Brasília, já com um currículo excepcional, após conquistar prêmios nacionais, como o Prêmio Netflix, na Mostra de SP, e internacionais, no Festival Mar del Plata. 

Confira a entrevista completa com o cineasta Haroldo Borges:

Revista Fórum: As eleições de 2018 influenciaram de qual maneira na concepção do filme? 

Haroldo Borges: O filme foi rodado quando já estávamos todos mergulhados no caos fascista que assolou o país. Naquele momento, filmar ganhou o gostinho de clandestinidade. Isso por conta do intenso trabalho do governo federal em criminalizar a cultura. 

Questionar é veneno pra fascista, então todo artista se tornou, naquele momento, um suspeito, um inimigo em potencial. 

Iniciaram uma onda de acusar a cultura de ter abandonado os valores sagrados da família, da pátria e de deus. Esse velho discurso colou no Brasil.  

Colou na minha família! Foi impactante descobrir familiares e amigos próximos defender fervorosamente essas ideias. Parecia ser uma epidemia de cegueira que se espalhava por todo o país.  

Então a cegueira do personagem no filme se tornou a metáfora perfeita para o que estávamos vivendo naquele momento.  

Mas todo esse clima de desesperança, acendeu um desejo ainda maior de contar uma história que apontasse a luz. Uma história que mesmo dentro da escuridão, conseguisse alimentar a esperança de encontrar a luz.  

RF: A região do sertão da Bahia, nesse caso, representa de alguma forma uma região de resistência a esse "clima de cegueira" que inspirou o filme? 

HB: Filmamos numa cidade muito pequenininha no coração do sertão da Bahia, numa região muito famosa. Estávamos próximos a Canudos, famosa por suas lutas de resistência. Era curioso quando as pessoas nos apontavam as velhas trilhas de passagem do Antônio Conselheiro.

Nas últimas eleições presidenciais o Nordeste saiu com o crédito de ter livrado o Brasil do fascismo. Que o Nordeste possa despertar no país essa resistência nasce da própria história da região. De suas inúmeras lutas e revoltas. Do nosso Dois de Julho, que é a verdadeira data da independência do Brasil. 

Em “Saudade” vivenciamos o espírito dessa resistência sertaneja no personagem que busca encontrar luz mesmo estando dentro da escuridão. Por isso foi fundamental trabalhar com atores que fossem de lá mesmo do sertão. Deixamos que a espontaneidade nos guiasse na busca de uma verdadeira autenticidade. Criar um filme cheio de sotaque.

Bruno e Roni, que vivem no filme dois irmãos, estabeleceram uma conexão tão forte entre eles, que muita gente acredita que eles são irmãos de verdade. Mas eles só se conheceram durante a preparação do filme. Agora, eles se tornaram irmãos do coração. 

RF: Vocês ainda veem o "clima de cegueira" da eleição de 2018 presente, seis anos depois? 

HB:Fatalmente a visão de mundo fascista segue se alastrando. Há no país um perigo latente. Algo por dentro vem corroendo os valores básicos da democracia. O que acontece é que grupos políticos em seu projeto de poder, vilanizam partes da sociedade. Culpabilizam eles por toda a origem da frustração. Estamos frente a um grande desafio no Brasil de hoje. Mas há esperança. Estamos no exato momento onde temos a possibilidade de abrir novos caminhos. E esses caminhos passam necessariamente pela cultura e pela educação.  

RF: Quais foram as suas principais referências/inspirações para esse filme?

HB: A principal referência é o documentário. Mais especificamente o cinema direto. Aquela escola de documentário que explodiu nos anos 60, que tinha a fantasia de captar a realidade tal e qual ela é. Com cinco minutos de “Saudade” já podemos notar essas influências. A câmera na mão, o trabalho de improvisação com os atores, o uso da oralidade para transmissão da história ao elenco. 

O mais legal do documentário é que ele te conecta com quem você é de verdade. Te conecta com o espaço que você habita e com isso te aproxima de seu contexto social e político. Sabe aquela pergunta que geralmente fazem? Qual o melhor conselho que você daria hoje a você mesmo quando estava começando? Eu diria, “menino... presta atenção, faça documentário”. 

Essa é a melhor escola de cinema que conheço, principalmente para cineastas que querem fazer ficção. o documentário te dá um banho de realidade. Espanta todas aquelas influências pavorosas do cinema de Hollywood que você engoliu durante a infância. Te coloca com os pés firmes no chão. Abre seus olhos para o que é realmente a experiência de tá vivo. Te desperta pelo que realmente vale a pena lutar. Sem falar que é um verdadeiro convite para inventar um cinema próprio. Tem coisa melhor?  

RF: Está animado com 'Saudade' na lista de seis filmes da Academia Brasileira?

HB: Estamos comemorando até agora. É uma maravilha tá nessa listinha entre tantos cineastas que admiramos. É algo curioso, “Saudade” ganhou o Festival de Mar del Plata na Argentina, na categoria de melhor filme em 2022. Foi o terceiro filme brasileiro a ganhar o prêmio máximo em toda a história do festival. O Piazzolão de ouro, como chamamos carinhosamente. O primeiro brasileiro a ganhar foi Macunaíma em 1970, um clássico do cinema nacional! E “Saudade” foi o terceiro. Um filme baiano e ninguém falou nada. Passou batido. Com essa listinha do Oscar, já recebi até telefonema de tia querendo confirmar minha presença no natal. E olha que estamos ainda em setembro. Esse é o efeito do Oscar. 

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