CULTURA

Humanista sem concessões, James Baldwin completa 100 anos

Baldwin realiza com simplicidade arrebatadora o que almejou e perseguiu por toda vida — “ser um homem honesto e um bom escritor”. 

James Baldwin.Créditos: Dmitri Kasterine
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Nascido no Harlem em meio à oratória das comunidades pentecostais, James Arthur Baldwin (1924-1987), tão logo se descobriu escritor, tomou parte da linguagem como pregador aos quatorze anos de idade.

Revelando desde cedo a sensibilidade para as contradições de uma vida marcada por dilemas, o escritor completa 100 anos de existência neste dia 2 de agosto e consagra, por meio de sua obra, o testemunho daquela consciência dupla com a qual W. E. B. Du Bois caracterizou a experiência afrodiaspórica, pensando na identidade cindida por posições não conciliadas.

Em sua autobiografia lançada em 1955, editada no Brasil pela Companhia das Letras, “Notas de um filho nativo” é um relato dessas cisões. Escrito com a firmeza existencial de Baldwin, o livro expõe as ambiguidades espirituais de uma sociedade fraturada por desigualdades. Em meio aos conflitos raciais e a efervescência cultural deixada como legado pelo movimento do Harlem Renaissance nos anos 1920, com escritores como Countee Cullen e Langston Hughes à frente, a literatura de Baldwin recompõe com riqueza o clima político e cultural do seu tempo. 

No entanto, se a tarefa do artista é recriar com base na ‘desordem da vida’, como ele escreve, o relato que faz das circunstâncias que o formou está muito além da simples denúncia: é a realização exemplar da tarefa do romancista de seguir em direção à uma ‘realidade mais vasta que nos liberta de nós mesmos’. 

Se as lentes identitárias nos leva num primeiro instante a interpretá-lo como autor restrito às suas próprias dores enquanto homem negro, pobre e homossexual —  dores sobre as quais Baldwin poderia ter efeito somente entre os seus pares mais próximos, como alguns poderiam sugerir —, ele logo trai nossas expectativas com a independência do seu pensamento e adverte, com toda convicção, não ser o negro que esperamos que ele seja. 

"Você acha que sua dor e seu coração partido são sem precedentes na história do mundo, mas então você lê. Foram os livros que me ensinaram que as coisas que mais me atormentavam eram as mesmas coisas que me conectava com todas as pessoas vivas e que já viveram", escreve com sua marca universalista e em rechaço aos chamados ‘romances de protesto’ que, como afirma ele, rejeitam a vida “ao insistir que apenas sua categorização é real e não pode ser transcendida”. 

Inspirado por Henry James e Charles Dickens, para além de uma memória auto-referenciada na sua própria posição na sociedade, o autor do clássico “Quarto de Giovanni” exercitou a expansão da consciência para além das identidades enclausuradas. Retratando não apenas a realidade mais próxima marcada na superfície da pele, no signo distorcido pela ideologia do supremacismo branco — “faz parte do trabalho do escritor examinar as atitudes, ir abaixo da superfície, chegar até a fonte” —, Baldwin se expande em direção à alteridade através da construção das personagens, reposicionado o discurso antirracista em favor não do isolacionismo, mas de uma postura cosmopolita, plural e ilustrada. Reivindicando enquanto sua a história de toda cultura. 

Amante fiel à França, onde se autoexilou e passou boa parte da vida adulta para que não pudesse se tornar apenas um “escritor negro” no seu país natal, demonstrou ser também um existencialista à altura de Fraz Fanon e Albert Camus. Nas memórias que escreve sobre o seu padrasto, David Baldwin, de quem herdou o sobrenome, ele expõe com complexidade a mácula do racismo sobre a vida de pessoas racializadas. “O ressentimento que contribuiu para a morte do meu pai poderia me matar”, reconheceu com clareza cortante sobre a necessidade de se colocar publicamente como uma das consciências mais altivas da sua geração. 

Uma decisão de vida para quem poderia apenas ter se isentado, sua participação ativa no movimento pelos direitos civis e pela libertação sexual nos anos sessenta serviu como força motora de uma escrita tão sóbria quanto cativa no seu chamado à conscientização coletiva; sem significar, contudo, uma rendição adesista ao pensamento de rebanho. “Tanto os brancos quanto os negros tem excelentes razões para não querer de modo algum olhar para trás; ademais, o passado só deixa de ser horrivel no dia em que resolvemos examiná-lo de modo honesto”. E ele, nos instruindo para o futuro, olhou para o passado como ninguém. 

Exprimindo seu humanismo entre peças, ensaios e contos, além de romances reconhecidos como “Go Tell It on the Mountain” (1953, ainda sem tradução para o português), “Numa terra estranha” (1962) e “Se a rua Beale falasse” (1974), apesar de ser reconhecido hoje, o pensamento de Jimmy, como apelidado por sua amiga de infância, sempre esteve longe da unanimidade quando revisitamos os debates nos quais se colocou.

Discriminado mesmo entre a comunidade afroamericana, a sexualidade de Baldwin foi duramente atacada por Eldridge Cleaver, ex-pantera negra, que descreveu sua homossexualidade como ‘desejo de morte racial’, no que teria sido considerado uma concessão à branquitude em prejuízo da virilidade masculina; razão pela qual foi intencionalmente ignorado pelos organizadores da Marcha em Washington de 1963, de acordo com David Leeming, autor de “James Baldwin: A Biography” (1994). 

Porém, se a sua independência intelectual em defesa da experiência pessoal e autêntica foi ao longo dos anos interpretada por muitos como individualismo desagregador, Baldwin seguiu como pregador sem rebanho, desafiando as certezas impostas pelo racialismo de brancos e negros. Otimista até as últimas consequências, mas nada ingênuo quanto aos desafios da realidade, acreditava que o sofrimento não dura para sempre. “É impossível divorciar as coisas que o machucaram das que o ajudaram”, escreve em sua nota autobiográfica. 

Ao lermos Baldwin, encontramos uma escrita sofisticada e vibrante que corresponde à nossa própria complexidade humana. Vislumbramos o que Susan Sontag reverenciou como ‘aristocracia da sensibilidade’: a postura desatrelada do poder e da linhagem, mas vinculada àquela abertura para o mundo de possibilidades que somente as fraturas da identidade cindida revelam. A “sorte grande” que o nosso autor reconhece por ter nascido nas distensões de um homem negro queer. 

E por isso, mas sobretudo apesar disso, Baldwin realiza com simplicidade arrebatadora o que almejou e perseguiu por toda vida — “ser um homem honesto e um bom escritor”.