CRÔNICA DE DOMINGO

Crônica de Dia dos Pais do outro lado do espelho

Crônica de Antonio Mello, autor de Madame Flaubert, ELA, A Metáfora de Drácula e outros

Créditos: Imagem gerada por IA
Escrito en CULTURA el

Ele sabe tudo de mim. Não tenho como esconder nada dele. É o meu critico mais implacável. Mas é também quem às vezes me olha com um olhar cúmplice nas horas de desconsolo.

Me acompanha pelos tempos e mesmo quando parecemos desligados, um esquecido do outro, ele me surpreende com seu olhar fulminante, lembrando-me que sempre vai estar comigo e que jamais posso esquecê-lo.

Aliás, não é que eu queira. Nunca pensei em esquecê-lo. Mas é que às vezes seria melhor não saber que ele está acompanhando meus fracassos, quando os tenho. E como são tantos.

É duro pra mim reconhecer que não correspondo às suas imensas expectativas sobre mim. Embora reconheça que ele mesmo se mostra condescendente nessas horas, como quem diz "aposto em você, mas não tenho certeza das vitórias e espero mais pelas derrotas"...

Ou será que ele não pensa nada disso e eu é que projeto meus fracassos e minhas trapaças para eludi-las nele?

A verdade é que é muito difícil a vida, muitas vezes por culpa nossa mesmo, por desenharmos planos impossíveis de metas inatingíveis como se fôssemos ao cinema não para assistir ao filme mas para ser o herói do filme romântico.

Não, prisioneiros da poltrona, apenas sonhamos com a tela e com o que imaginamos a partir dela.

Sonhos gloriosos que projetamos para nós, eu e ele, que no entanto invariavelmente terminam em frustrações, ainda mais quando elas são vistas pelos olhos dele, que me fulminam.

Ele sabe que eu agi errado e me cobra sem palavras, na maioria das vezes. Basta seu olhar para eu saber que não deveria ter feito o que fiz.

Mas não posso descrevê-lo assim, como a um tirano, porque ele absolutamente não o é. Como eu também não sou um "derrotado", e a vida não é feita disso, vitórias e derrotas. 

Eu é que sou responsável por minhas escolhas e quando as cotejo com as dele é que me sinto sempre devendo, eterno devedor.

Mas é que ele não cresce comigo. Me acompanha mas não evolui, não vive meu tempo, as dificuldades que vivo no presente eterno em que convivo comigo e que não é o mesmo que convivo com ele, que, embora em mim, é passado.

Ele não tem a dureza do dia, nem sente o calor do sol ou o frio do vento e da chuva. Sabe apenas das emoções do beijo daquela garota, da tristeza de uma despedida, da alegria de uma vitória ou dos sofrimentos das derrotas.

Ainda assim ele está sempre comigo e me surpreende com seu olhar, como me pega de surpresa, quando menos espero. 

Ou então em dias certos: meu aniversário, o de meu pai, o de minha mãe e irmãos, e especialmente em dias como o de hoje, Dia dos Pais.

Olho no espelho pela manhã ao acordar e ele está lá: o menino que eu fui, meu pai. 

Porque a criança é o pai do adulto e o acompanha mesmo após a morte daquele pai que é o homenageado do dia.