Os cinemas brasileiros recebem este mês o filme “A Flor do Buriti”, ou Crowrã, distribuído pela Embaúba Filmes e produzido pelos diretores Renée Nader Messora e João Salaviza. O longa-metragem, que conquistou 14 prêmios em mais de 100 festivais ao redor do mundo, incluindo o prêmio de melhor elenco na Mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes de 2023, aprofunda a história, a cultura indígena e o massacre do povo Krahô, no nordeste do Tocantins, além de expor a luta secular vivenciada pelas comunidades indígenas no Brasil.
O drama mostra as violências perpetradas por fazendeiros da região e como elas ecoam na memória e no imaginário das novas gerações, principalmente o massacre ocorrido em 1940, onde dezenas de indígenas da tribo perderam suas vidas, e após muitos de seus sobreviventes serem incitados a integrar uma unidade militar durante a ditadura militar, em 1969.
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Ainda enfrentando velhas e novas ameaças como seus antepassados, o longa revela que os Krahô persistem em terras marcadas por sangue, reinventando diariamente inúmeras formas de resistência. Ao relatar a história, a luta e resgatar a ancestralidade Krahô, o filme provoca inúmeros sentidos e reflexões sobre as condições que a aldeia precisa enfrentar com as invasões e mostra além do óbvio, é o que conta um dos diretores responsáveis pela produção, João Salaviza, à Fórum.
“Percebemos que a única forma de filmar essa sequência era a partir da memória compartilhada, a partir de relatos, do que ainda perdura no imaginário coletivo desse pessoal que insiste em sobreviver”, afirma. “Nosso desejo é multiplicar as vozes. Isso é uma coisa que a gente aprende também com os Krahô, não com o cinema. Multiplicar as vozes e multiplicar os olhares”.
Um deles, inclusive é o Buriti, a tradução de Krowran, da tradição Krahô, o título original do filme: “Crowrã” significa Buriti e Rã é a flor, nome que foi dado carinhosamente a também diretora do longa pelos Krahô durante as filmagens, Renée Messora, segundo Salaviza.
“O Buriti foi um segundo olhar sobre essa história e uma testemunha que permaneceu de pé e que observou e acompanhou tudo o que aconteceu nos 100 anos de história que o filme tenta traçar”
Olhar indígena
Resultado de um coletivo audiovisual formado por artistas indígenas, fruto de um longo convívio dos diretores Renée e João com os Krahô antes mesmo do primeiro filme “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” (2019), o trabalho foi filmado ao longo de quinze meses em quatro aldeias distintas, na Terra Indígena Kraholândia. “Nossa relação com os Krahô começou em 2010, sempre intermediada pelo cinema, mas extravasando o fazer cinematográfico. O cinema era uma curiosidade naquele momento na comunidade, então um grupo de jovens me convocou para realizar algumas oficinas e, a partir daí, a gente iniciou um trabalho de formação audiovisual”, disse Renée à Fórum.
Segundo ela, o grupo começou a contar suas próprias histórias e assim, eles romperam com o formato tradiicional para fazer um longa narrado, guiado e pensado conforme a realidade do povo indígena e por ele.
“O cinema podia ser uma ferramenta de arma política, ele podia ser utilizado para denunciar coisas e negociar coisas também com o Estado, com os órgãos indigenistas, a saúde indígena, a própria FUNAI. Então, a ferramenta audiovisual ganhou uma relevância na comunidade.”
A partir de uma experiência que estava vivendo um dos meninos indígenas do coletivo, o primeiro filme “atravessou um processo parecido com o qual o Iñaki atravessa na chuva e cantoria”, diz ela, que por 15 anos, trabalhou como assistente de direção em outros projetos no Brasil, Argentina e em Portugal.
“Esse processo foi acompanhado por nós muito de perto e começou a surgir então um desejo já não como uma ferramenta para alguma coisa, se não como uma forma também de fazer, tornar, levar para fora da aldeia esse mundo sensível que a gente via e vivia ali na comunidade. O Chuva ainda era um filme que aproximava a intimidade de um adolescente Krahô com o seu mundo.”
Longe da narrativa clássica
Segundo eles, era preciso se afastar da narrativa ocidental, era preciso deixar as imagens e os acontecimentos cumprirem seu papel na produção de significados. “No Flor do Buriti, a gente já está tentando se aproximar de uma outra forma de contar a história, a gente tenta deixar para trás essa forma de narrar clássica, a gente tenta fazer um filme onde não há um protagonista”, enfatiza a diretora. “Tentamos abandonar essa linearidade da narrativa com o protagonista masculino que enfrenta os seus demónios e os seus inimigos, inspirado nessa figura militar do cowboy, a gente foge dessa narrativa também.”
“Sentimos que as respostas para as nossas dificuldades no momento de filmar, para os questionamentos sobre a forma, sobre a narrativa, sobre a discursividade do próprio filme, elas não estão na história do cinema, não estão nos cineastas que a gente admira; essas respostas estão sempre nas ontologias que a Jotàt criou na sua forma de pensar, de habitar, de narrar também”, comenta Salaviza.
Mulheres indígenas protagonistas
Jotàt é uma das figuras centrais do longa que pressente os acontecimentos da aldeia e representa a vida das crianças indígenas e o futuro da tribo, além disso, ela, como criança, se apresenta como uma testemunha do tempo e uma espécie de inteligência coletiva, como aponta Salaviza. “Enquanto mediador de mundos. Ela vai sendo permanentemente reativada, então ela, de alguma forma, ela é os olhos da comunidade em outros tempos, e é o que faz com que essas memórias sejam mantidas vivas.”
Com participação da ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara e das mulheres indígenas Krahô que lutam por seus direitos à terra e à existência, precisando viajar a longas distâncias, o documentário ainda explora um lado geralmente pouco retratado: o protagonismo feminino indígena na política. “Tem uma presença feminina muito, muito forte, isso também porque hoje o que a gente vê é que o movimento indígena nos krahô também é totalmente liderado por mulheres. Há uma politicidade feminina muito presente”, afirmam os cineastas.
Em 2023, o longa recebeu aplausos em Cannes e também foi prestigiado pela mídia internacional no lançamento.
A revista Variety escreveu:
“Uma grande magia poética. Os indígenas brasileiros assumem o controle de sua história em um documentário impressionante”.
De acordo com o site The Hollywood Reporter, o longa foi considerado:
“Uma fusão vívida e íntima de etnografia e narrativa poética. Uma história de trauma e resiliência: povos nativos massacrados, os sobreviventes expulsos de seu habitat ancestral.”
O jornal francês Le Monde também descreveu o filme como uma produção que atingiu seu maior objetivo em denúncia ao massacre do povo Krahô, mas também ao trazer junto uma beleza infindável, tocante e necessária:
“Um filme de uma beleza plena. A viagem toca no sagrado, que se realiza lentamente, ao ritmo das tarefas quotidianas, dos gestos e dos rituais ancestrais, esculpindo um território poético à medida que avança. Memória esquecida subitamente revivida pelo povo Krahô cuja realidade e imaginação se conectam com a nossa.”
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