Meu pai, o velho Júlio, sempre assertivo, talvez na época menos velho do que sou hoje, costumava repetir: “o Chico Buarque não erra. Quando eu tenho dúvidas sobre algo, procuro saber a opinião dele. Ele está sempre certo.” Meu pai falava sobre política. Mas, mesmo assim a frase me soou um tanto exagerada. Não há ninguém neste planeta que está sempre certo.
Passei, desde então, a procurar, com certa calma, os erros ou prováveis erros do Chico. Sigo tentando.
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Logo após uma apresentação que fizemos só com canções do Chico, uma moça me disse que havia achado tudo ótimo e que só tinha um reparo a fazer: nós não deveríamos perder tempo falando sobre política. Que o próprio Chico também não deveria perder tempo com isso. Como disse Caetano Veloso, na canção “Ele me deu um beijo na boca”, em seu álbum “Cores, Nomes”, de 1982, logo após citar Delfim, Margaret Thatcher, Menahem Begin: “política é o fim”.
O próprio Chico chegou a afirmar algumas vezes, sobretudo durante o período entre o final da ditadura e o início do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que havia se cansado de falar de política. Que agradecia poder, naquele período, se dedicar a outras questões. Foi só, no entanto, a coisa voltar a engrossar, com a destituição do governo de Dilma Rousseff e a posterior eleição do candidato da extrema direita, que o compositor ressurgiu em eventos e discursos políticos.
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As caravanas
E ressurgiram também canções suas politizadas. Como exemplo “As Caravanas”, que dá nome ao seu álbum de 2017. Uma crítica virulenta e precisa à classe média alta da Zona Sul do Rio de Janeiro que repudia meninos moradores dos morros e periferias que frequentam as praias:
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Não sem antes, fazer troça de um certo e incontrolável desejo sexual por parte das madames virtuosas:
Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné
Foi por este período que, logo após ter afirmado em uma entrevista que todos os brasileiros tinham sangue negro, que branco mesmo no Brasil só se cruzasse a Xuxa com o goleiro Taffarel, que Chico, ao entrar em um restaurante no Leblon, se deparou com uma senhora aos berros pra ele: “eu não sou negra, eu não sou negra”.
Mais explícita ainda foi a pergunta em forma de canção que fez no final do governo Bolsonaro, pouco antes das eleições que, por uma pequena margem de votos, deu mais um mandato ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva:
Um samba
Que tal um samba?
Puxar um samba, que tal?
Para espantar o tempo feio
Para remediar o estrago
Que tal um trago?
Um desafogo, um devaneio
O lado certo da história
O fato é que, gostando ou não, Chico jamais se furtou a discutir, dar seu pitaco nas coisas da vida nacional. E, assim como indica a frase – que em um primeiro momento me pareceu um tanto exagerada – do meu pai, ele está mesmo sempre do lado certo. Como diz o jargão, no lado certo da história.
Foi contra a ditadura, contra a exploração dos trabalhadores, denunciou o problema gravíssimo dos acidentes de trabalho, a questão dos menores abandonados e marginalizados pelas ruas das nossas grandes cidades, o descaso da classe média alta e dos ricos com os desfavorecidos, a questão das mulheres, o machismo, enfim, sempre do lado do oprimido.
Posto isto, sigo apreensivo aguardando pelo improvável erro do Chico Buarque que nunca veio, talvez e tão somente só pra contrariar um pouco o pai. Pra reafirmar que nada é tão absoluto assim.
O cantor, compositor e escritor chega nesta quarta aos 80 anos. Ainda deverá viver mais uns 80 no mínimo, afinal é impossível imaginar um Brasil sem ele. E dai então, nesse meio tempo, talvez possamos encontrar algum escorregão seu. Por enquanto, Seu Júlio segue certo. O Chico não erra.