Após mais de um século intrigando leitores, as maiores dúvidas de "Dom Casmurro" podem ter encontrado respostas. A traição de Capitu e o significado dos "olhos de ressaca" podem ser esclarecidos, ou quase isso, pelo próprio Machado de Assis. No Rio de Janeiro, a Academia Brasileira de Letras (ABL) inaugurou nesta terça-feira (5) um avatar em tamanho real do autor, falecido em 1908.
A tecnologia de inteligência artificial (IA) permite que o avatar interaja em tempo real com o público, respondendo perguntas e conversando sobre diversos temas. O Machado virtual incorpora não apenas os traços físicos do escritor, mas também sua personalidade e estilo literário. O avatar está programado para responder a qualquer pergunta, desde as mais simples até as mais complexas, sempre com o humor e a ironia que caracterizaram as obras de um dos maiores autores do país.
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Flávia Peres, fundadora da empresa de novas tecnologias responsável pela criação do avatar, Euvatar Storyliving, revelou que o projeto trabalhou com mais de 1 milhão de parâmetros em um período de três meses para treinar o Machado virtual. “Fomos ajustando o tom de voz dele, a forma como ele respondia, quem ele era, fomos, digamos que fazendo com que ele entendesse quem ele era como personagem”.
Praticamente retornando à antiga casa como IA após 115 anos, Machado de Assis, o fundador da ABL, “em vida” permite que brasileiros o conheçam, revivam suas memórias e reflitam sobre sua obra e legado. Vale notar um ponto curioso: o cruzamento entre tecnologia e cultura, geralmente um obstáculo conceitual para IAs. E essa tentativa de espelhar o olhar social da personalidade do escritor e torná-la existente, pode mudar a forma como conhecemos Machado de Assis.
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Críticos também pontuaram que o avatar se apresentava esbranquiçado, regressando ao dilema enfrentado pelo escritor no século XX. Além disso, tinha sotaque paulistano, que não era originariamente do autor, que era carioca. O público que deseja conhecer a versão digital de Machado de Assis e interagir pode se inscrever para uma visita guiada à sede da ABL.
As visitas são gratuitas e a inscrição deve ser feita no site da ABL (www.academia.org.br). Elas serão realizadas todas as quartas-feiras, exceto feriados. Um grupo de atores guiará os visitantes, contando fatos históricos da Academia e curiosidades sobre seus membros.
Afinal, Capitu traiu ou não Bentinho?
A história que não tem fim, ou talvez, a maior polêmica da literatura brasileira, o clássico “Dom Casmurro” retrata o relacionamento profundo entre dois personagens: Bento Santiago e Capitolina. Desde a infância, na rua do Matacavalos, Bentinho nutre uma paixão avassaladora por Capitu, sua amiga e futura esposa. A relação entre os dois é marcada por uma intensa cumplicidade. No entanto, com o passar dos anos, a obsessão de Bentinho por Capitu se transformaria em ciúme possessivo.
O principal ponto de discórdia surge com a chegada de Escobar, amigo de Bentinho e frequentador assíduo da casa. Bento começa a desconfiar da relação entre Capitu e Escobar, alimentando a paranoia de que os dois estão tendo um caso. A narrativa é repleta de ambiguidades e pistas contraditórias, alimentando o enigma da traição. Há momentos em que Capitu parece ser uma mulher infiel, enquanto em outros se mostra fiel e dedicada ao marido.
Vários estudiosos ainda consideram que Bentinho agiu subjetivamente, seja por paranoia ou pela época em que as mulheres não tinham direitos e geralmente eram subordinadas aos seus maridos e julgadas moralmente, principalmente quando quem conta a história é Bentinho. Ao mesmo tempo, em alguns trechos ele mesmo admite ser desconfiado demais, o que alimenta essa grande dúvida.
Quando questionado se Capitu traiu Bentinho, o Machado virtual revela:
“Essa é a questão que tem provocado inúmeras discussões e interpretações ao longo dos anos. Em Dom Casmurro, eu apresento a história de Bentinho e Capitu deixando pistas e sugestões, mas sem fornecer resposta definitiva. A dúvida sobre a suposta traição de Capitu é proposital, convidando o leitor a refletir sobre a natureza da paranoia de Bentinho e a incerteza das relações humanas, é portanto um mistério que permanece intencionalmente sem solução.” O avatar ainda aprofundou o significado da expressão "olhos de ressaca" empregada para descrever Capitu, e esclareceu que pretendia transmitir a ideia de que seus olhos emanavam um “mistério hipnótico e insondável”.
Quem é Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis, apesar de ter sido criado em uma família de baixa renda e não ter recebido uma educação formal, foi um jovem autodidata, graças ao seu amor pela literatura. Em 1860, Machado de Assis começou a contribuir para o “Diário do Rio de Janeiro”, e foi nessa década que ele escreveu a maioria de suas comédias teatrais e “Crisálidas”, um livro de poemas.
Posteriormente, Machado teve acesso à literatura portuguesa e inglesa, e na década seguinte, publicou uma série de romances que foram reconhecidos tanto pelo público quanto pela crítica. A produção literária de Machado de Assis era predominantemente romântica até então. No entanto, na década seguinte, houve uma significativa mudança estilística e temática em sua escrita.
Ele iniciou o movimento realista no Brasil com a publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), seguido por “Quincas Borba” (1891) e “Dom Casmurro” (1899), este último considerado sua obra-prima. Durante esse período, a ironia, o pessimismo, o espírito crítico e uma profunda reflexão sobre a sociedade tornaram-se as principais características da escrita do autor. Além de romances, o repertório de Machado de Assis também inclui poemas, contos, traduções e peças teatrais.
Após a fundação da Academia Brasileira de Letras e a perda de sua esposa Carolina (com quem se casou em 1869), Machado de Assis começou a se isolar e sua saúde começou a piorar. Foi nesse período que ele escreveu seus dois últimos romances: “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires”. Essas obras refletem um período de introspecção e reflexão na vida do autor, marcado por perdas pessoais e desafios de saúde.