CRÔNICA DE DOMINGO

Kafka, os abutres e eu

Atrasada, a crônica de Domingo trata do drama kafkiano em que estamos enredados

Créditos: Reprodução do Instagram
Escrito en CULTURA el

Estava procurando por uma antiga coletânea de contos de Kafka, que não sabia onde havia posto. Até que achei. Meu objetivo era um conto sobre uns bárbaros que haviam invadido a cidade. 

Na minha lembrança, os moradores foram admitindo a presença dos bárbaros, convivendo com eles, por mais que fossem violentos e incontroláveis. Eu me recordava mesmo de uma cena em que um boi vivo foi oferecido a eles, que o devoraram a ponto de deixarem apenas os ossos.

Quando achei um dos livros de Kafka, olhei o índice à procura do conto, vi que estava ali mesmo, era Um Velho Manuscrito. Mas um outro conto no índice me chamou a atenção e fez gelar meu sangue, como acontece quando se tem algum mau presságio, ao ler o título: O Abutre.

Como quem quer adiar um problema, fui primeiro ao conto que me fez procurar o livro, e vi que havia me enganado. Não se tratava de bárbaros, mas de nômades. No entanto, o horror era o mesmo que havia ficado na minha lembrança. Não querendo confrontá-los, de concessão em concessão, a cidade via os nômades tomarem conta de tudo.

Fui então ao conto O Abutre. E agora explico por que ele me deu a estranha sensação. Escrevi há alguns anos um conto curto sobre um abutre. Teria eu inconscientemente plagiado Kafka, a ponto de nem me lembrar que ele tivesse um conto com esse título, que eu com certeza lera na coletânea?

Abri o conto de Kafka e vi que felizmente não o havia plagiado. Mas que aquele conto influenciou inconscientemente o meu, com certeza.

No conto de Kafka, um homem tem seu pé beliscado diariamente por um abutre. Até que um cavalheiro passa por ele e pergunta por que permite aquilo. Ele diz que não tem o que fazer. O outro diz que sim. Aqui vou para o texto de Kafka:

– Não se deixe atormentar com isto – disse o cavalheiro. – Basta um tiro e é o fim do abutre.
– Acha mesmo? – perguntei.  – E o senhor faria isto por mim?
– Com prazer – disse o cavalheiro. – Só preciso apanhar meu fuzil em casa. Pode suportar mais meia hora?
– Não estou certo disto – respondi e, por um instante, fiquei rígido de dor. Depois, acresci:
– Por favor, tente de qualquer forma.
– Muito bem – disse o senhor –, irei o mais rápido que puder.
Em silêncio, o abutre ouvira tranquilamente o nosso diálogo e deixara vagar o olhar ente mim e o cavalheiro. Naquele instante, percebi que ele compreendia tudo. O abutre voou um pouco mais distante, recuou para obter um bom impulso e, como um atleta que arremessa o dardo, enfiou profundamente o bico em minha boca.
Ao cair de costas, senti-me aliviado. Senti que no meu sangue – e este me preenchia todas as profundidades e me inundava todas as margens – o abutre, irremediavelmente, se afogava.

Agora o meu conto curto, de 2017:

Aproveitando os termais, o abutre descreve círculos no céu imensamente azul do deserto. Observa lá embaixo o homem caído. Há muito o persegue, esperando por esse momento. Todos os outros abutres do bando já haviam desistido. Mas ele não. 

O homem também não. Ao menos até aquele momento, quando caiu perto de uma árvore seca. Estão há dias sem comer ou beber e, num raio de quilômetros, não há nada para saciar a fome ou a sede. A não ser um. E outro. E os abutres têm sede. 

Por experiências anteriores, ele sabe que a maior parte do corpo do homem é água. 

Ele pousa na árvore. 

O homem não esboça reação. Está morto. 

Mais sedento que faminto, o abutre salta sobre o homem para descobrir, surpreso, que ele ainda não havia desistido, e agora segura firmemente seu pescoço pelado com uma das mãos, enquanto a outra golpeia-o com uma faca, fazendo o sangue espesso jorrar diretamente para uma boca seca e poeirenta. Porque os homens também têm sede. 

* * * * * 

Foi quando fiz a ligação entre o que me levou a buscar o conto Um Velho Manuscrito, à redescoberta do Abutre e à releitura do meu Abutre: os bárbaros (na verdade, nômades), os abutres, que estão tomando conta de nossas vidas e que alimentamos de concessões em concessões que fazemos a eles.

Será que vamos precisar dar nossas vidas, ou fingir que as doamos, para nos livrarmos deles que, de modo absurdo, kafkiano, nos invadiram como uma praga de ratos?

Acho que é tempo de reler A Peste, de Camus.

Antonio Mello é autor de "ELA", "Madame Flaubert" e outros, e escreve no Blog do Mello e aqui na Fórum. Saiba mais

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