CRÔNICA DE DOMINGO

O roçar erótico das letras, palavras e sentenças

Trecho de romance trata do amor pelas palavras

Créditos: Trecho da capa do romance de Antonio Mello
Escrito en CULTURA el

Leléu saiu do apartamento de Antônio C. deixando-o só com Anabel. Mais uma vez pediu-lhe que guardasse uns pacotes com o que afirmou ser cocaína pura. Antes, cheiraram juntos - Anabel recusou - uma certa quantidade. O bastante para AC perceber que se trata da cocaína “de sempre”. A que lhe causa o mesmo efeito: uma necessidade compulsiva de falar. Ainda mais agora, que está pela primeira vez a sós com Anabel, e em seu próprio apartamento. Isso aumenta a angústia e o obriga a falar sem parar, pelo medo absurdo do silêncio, da pausa que pode levar ao abismo.

Quer desesperadamente impressionar Anabel. Mais até do que impressioná-la, quer não decepcioná-la. E o fato de ela não beber, fumar ou cheirar e ainda manter fixos, profundos e lindos os olhos nele, ao mesmo tempo o fascina, envaidece, e aterroriza. Sente-se como se observado com uma lente de aumento. Tem medo de chateá-la com suas obsessões, seus eternos assuntos sobre a perfeição de Madame Bovary, os inúmeros textos que produziu - todos ainda por concluir -, seu método - ou melhor, sua total falta de método - de escrever; mas ela mantém grudado no rosto um eterno e delicioso sorriso que o estimula a falar ininterruptamente. Sim, Anabel ali à sua frente personifica todas as plateias com que sempre sonhara. Pode abusar de suas frases de efeito, buscar pausas - com idas estratégicas ao banheiro, ou à geladeira, ao bar... - nos momentos em que ela espera uma conclusão, tudo para aumentar a magia, o encantamento, o clima de sedução com que busca envolver a incauta. 

Na verdade, em sua atualização absoluta da vida, que é vivenciada como um eterno momento presente, Antônio C. está completamente apaixonado por Anabel. Não o estava ontem, talvez não o esteja amanhã, mas agora, neste instante em que fala e ela o escuta, tomado de paixão por ela, pretende apenas isso: que ela o admire, o ame, o endeuse eternamente. Se um assunto a interessa, ele o alonga. Desdiz-se descaradamente, se algo parece desagradá-la. Usa inclusive de trapaça para enfeitiçá-la: Malvina havia lhe dito que Anabel gostaria de conhecê-lo por causa de um pequeno roteiro de umas cinco páginas que havia feito como exercício no curso de Gilsa P.

Gilsa o achava muito crítico, com um humor cáustico, e desafiou-o a escrever uma pequena situação romântica. Nada lhe veio à cabeça até que se lembrou de um poema de Drummond, chamado O Amor Através dos Tempos, ou dos Séculos, uma coisa assim - na verdade é “Balada do Amor Através das Idades”. A partir do poema construiu sua história. Agora, diante de Anabel, conta outra. Sabendo-a romântica diz que escreveu a história como uma isca para atraí-la.

— Mas você nem me conhecia — ela sorri.

Quem o vê falando com Anabel e conhece não só a história da criação do roteiro, como os chavões românticos de que é feito, acredita que Antônio C. aja desse modo de caso pensado, apenas para iludir Anabel. No roteiro, um homem persegue uma mulher dizendo que se conhecem há séculos. É uma história dessas absurdas, que qualquer mulher mais prática e realista pode encarar como uma “cantada barata”. Mas “o poeta é um fingidor”, e Antônio C. acredita piamente em tudo o que está dizendo - ao menos no instante em que fala. E para provar que não está mentindo, procura por papéis guardados, trechos antigos escritos, relê o roteiro com ela – mostra-lhe até o rascunho com anotações - tem o hábito de guardar tudo o que escreve, “para a posteridade”... Tudo isso às custas de mais e mais excitação nervosa, que ele afoga com Jack Daniel’s, calibra com cocaína, amacia com maconha. 

Quando dá por si, ela já acelerou o carro, cantando pneus em disparada. É manhã, e ele percebe que passou a noite inteira falando, falando e falando, sem dar um beijo sequer em Anabel - a não ser o formal, de despedida -, sem nem uma única vez ter tentado uma aproximação de corpos, tendo se deixado levar apenas pelo prazer de encaixar as palavras umas nas outras, esse roçar erótico de letras, palavras e sentenças, que – quem sabe? – ela talvez também tenha aproveitado. 

*Este é um capítulo de meu romance Madame Flaubert, lançado pela Publisher, em 2013. Você ainda o encontra à venda na internet. Mas se quiser receber um exemplar autografado em sua casa escreva para blogdomello@gmail.com. Para saber mais sobre este e outros livros de Antonio Mello: linktr.ee/blogdomello