CRÔNICA DE DOMINGO

Uma história de amor numa garrafa, entre Cortázar e Borges

Créditos: Reprodução da internet
Escrito en CULTURA el

Não sei por quê, mas a história que vou contar a seguir me lembrou a princípio um conto de Cortázar. Nele, um jovem sai da Argentina e vem para o Brasil, acho que para Pernambuco, trabalhar como engenheiro, se bem me lembro.

A mãe morria de saudades do filho e eles trocavam cartas, ansiosamente esperadas por ela.

Até que o filho morreu, subitamente. A família não sabia como dar a notícia à mãe, muito doente. Resolvem esconder a morte do filho e passam a escrever cartas por ele, que liam para a mãe emocionada e doente.

Isso durou um bom tempo. Até que a mãe veio a morrer também e os outros filhos ficaram sem saber como dariam a notícia ao irmão no Brasil...

Esse conto me veio à cabeça ao ouvir a história de um casal de amigos, na mesa ao lado da minha num restaurante no Centro, enquanto aguardava uma canja de galinha que havia pedido. Eu me recuperava de uma Covid, e estar na rua, num restaurante, sem precisar usar máscara já era uma alegria para mim. Mas, confesso, minha cabeça estava um tanto confusa — talvez reflexo da Covid.

O casal na mesa ao lado conversava sobre uma terceira pessoa, um jovem que seria muito amigo do casal — repito, de amigos.

A jovem contava a seu par que o amigo lhe entregara "este papel" (que ela colocou em cima da mesa), dizendo que o havia encontrado dentro de uma garrafa numa praia de Búzios, onde passara o final de semana.

Era uma história meio inverossímil, quem encontra garrafa com mensagem em praia nos dias de hoje? E quem ainda mandaria mensagem numa garrafa?

Curioso, fiquei acompanhando a história. Segundo comentava a jovem, a mensagem havia sido escrita por um jovem que estava a bordo de um navio de cruzeiro. Nela, ele narrava o drama que vivia. Um drama de amor. Ou melhor, um dilema.

Ela passou a ler a carta e o outro a acompanhava — curioso, como eu.

Em resumo, o autor da mensagem conta que vivia num dilema, pois era apaixonado por sua amiga, que era apaixonada por seu melhor amigo, num estranho triângulo amoroso. Com a diferença que o amigo não sabia da paixão deles. 

O dilema do autor era estar no navio com os dois e ter que tomar uma decisão. Porque o amigo objeto da paixão da amiga havia terminado um relacionamento recentemente. A amiga achava que aquela era oportunidade de se declarar a ele e pedia a opinião do amigo.

Parece confuso, como são confusos os triângulos amorosos.

Vou dar nome aos personagens então. A jovem da mensagem se chamava, vamos supor, Maria; o autor, Pedro; e o objeto da paixão, João.

Maria queria a ajuda de Pedro. Que ele informasse a João do interesse dela, ao menos para sondar.

O caso é que Pedro não poderia fazer essa pergunta a João, pois sabia a resposta. João também gostava de Maria, mas não se declarava porque sabia da paixão de Pedro por ela.

Mas Pedro não poderia ficar assim indefinidamente. E resolveu que tomaria uma decisão: contaria a João da paixão de Maria por ele. Ou contaria a Maria de sua paixão por ela.

O dilema era esse. Ele "sabia" da paixão de Maria por João. Então, por que se confessaria a ela, em que isso ajudaria no caso?

Mas, também, como aproximar os dois e assim  fechar para sempre as portas de Maria para ele, já que uniria o casal?

Escreveu sobre sua angústia e colocou-a dentro de uma garrafa vazia de limoncello (que ele esvaziara) e a lançou ao mar, na esperança de que algum dia ela daria numa praia onde alguém leria sua mensagem, o que lhe trazia um certo conforto.

Estava tão desesperado que anotou: "Quem estiver lendo esta mensagem viverá num tempo em que tudo isso já terá passado, inclusive minha angústia. E isso me basta.".

A jovem da mesa ao lado perguntou então ao jovem à sua frente o que ele achava daquilo tudo? Por que o amigo comum deles lhe entregou aquele papel com aquela estranha mensagem, que teria vindo de uma garrafa lançada ao mar?

Nesse instante chegou a minha canja. O garçom se postou entre mim e o casal e começou a falar, impedindo que eu os visse ou escutasse o que diziam.

Pedi ao garçom que deixasse a travessa, pois eu mesmo me serviria, e resolvi interromper o casal — antes pedindo licença pela intromissão.

— Acho que foi a maneira que o amigo de vocês encontrou — rocambolesca, hiperbólica — para dizer aos dois o que deveria ter dito de Maria a João: o amor de um pelo outro.

Foi quando me dei conta de que realmente a Covid trouxe um tanto de confusão a minha cabeça: a história estava mais para Borges do que para Cortázar.

Antonio Mello é autor de "ELA" e "Madame Flaubert" e escreve aqui na Fórum. Saiba mais

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