LITERATURA E SAMBA

Autora de ‘Um Defeito de Cor’, que inspirou enredo da Portela, celebra homenagem

“É uma conversa com a história contada no livro, adaptada para uma realidade que a gente vive no país até hoje”, destaca Ana Maria Gonçalves

Ana Maria Gonçalves escreve sobre a Literatura Afro-Brasileira.Créditos: Leo Pinheiro / Divulgação
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“Eu achei muito bonito. O samba-enredo não é exatamente uma adaptação do livro. É uma conversa com a história que está sendo contada no livro, adaptada para uma realidade que a gente vive no país até hoje. Vai ser uma grande homenagem às mães negras, principalmente àquelas que, por vários motivos, não puderam criar seus filhos. Algo que a gente vê desde a escravidão”, relatou a escritora mineira Ana Maria Gonçalves à Agência Brasil

No samba-enredo da Portela, Luís Gama, renomado advogado e abolicionista do século 19, enaltece a trajetória de luta da mãe. Originária da África e escravizada ainda na infância, Kehinde adquiriu sua liberdade e participou de revoltas que deixaram um legado significativo para o povo negro no Brasil. O desfile da escola de samba carioca na Sapucaí oferece uma nova abordagem do romance "Um Defeito de Cor", de Ana Maria Gonçalves, publicado em 2006, e se apresenta hoje (12), às 23h10.

“Tem muito mais a apresentar e a falar da nossa história”

“A maioria dos carnavalescos é branca. E ao falarem da história do povo negro no Brasil, muitos acabavam apresentando questões muito estereotipadas. Eu, como mulher negra, estava extremamente cansada de ver apenas sofrimento na avenida. Ao se falar de escravidão ou de negro, só a parte ruim se destacava. Era navio negreiro, chicotada, castigo. E a gente tem muito mais a apresentar e a falar da nossa história”, retrata Gonçalves. 

Nahistória contada no livro, Kehinde adota o nome Luísa quando chega ao Brasil, onde enfrenta uma série de eventos traumáticos, incluindo sequestro, escravidão, violência, estupro e morte. Embora consiga retornar à África em algum momento, sua mente nunca se desvia de seu filho, que foi vendido como escravo e cujo paradeiro permanece desconhecido. Enfrentando a idade avançada, a cegueira iminente e o espectro da morte, ela toma a decisão angustiante de regressar ao Brasil em busca de seu filho perdido.

Créditos: Reprodução/Internet

“É muito importante Um defeito de cor estar na avenida através da Portela, a escola mais antiga, a mãe de todas as escolas de samba, com dois carnavalescos negros que sabem do que estão falando”, ressalta a autora. Ela lembra que a literatura no país tem um viés elitista e o samba ajuda a desconstruir esse paradigma e democratizar o conhecimento. “A literatura é uma das artes mais elitistas, principalmente no Brasil. Uma grande parte da população não consegue comprar livros, porque são muito caros. Existe um mito de que o público mais simples ou mais pobre não quer ter acesso à literatura. Isso é uma grande mentira”, disse.

Enredos de dentro dos livros

Este ano, pelo menos cinco escolas de samba do Grupo Especial no Rio vão basear seus enredos em livros brasileiros. Além da Portela, a A Grande Rio escolheu como tema para seu enredo de Carnaval a obra "Nosso destino é ser onça", escrita pelo autor Alberto Mussa.

A obra reconstrói a narrativa Tupinambá sobre a criação do mundo, com a onça representando tanto um animal quanto um ser espiritual, através das lentes da devoração e da admiração. O livro traça essa evolução até os dias atuais, onde a figura da onça se tornou um símbolo de resistência e luta. Escola da qual Paolla Oliveira roubou o show na madrugada desta segunda-feira (12).

Outras escolas de samba optaram por enredos inspirados em obras literárias, como é o caso do Salgueiro, que presta uma homenagem ao povo Yanomami e se baseia na obra "A Queda do Céu", escrita por Davi Kopenawa e Bruce Albert.

Além disso, a Porto da Pedra escolheu "Lunário Perpétuo", uma obra do espanhol Jerónimo Cortés do século XVI, enquanto a Imperatriz Leopoldinense, vencedora do Carnaval recentemente, trouxe "O Testamento da Cigana Esmeralda", um cordel escrito por Leandro de Barros há mais de um século.