MEMÓRIA

Ainda Estou Aqui: o que aconteceu com família Paiva, retratada em filme histórico contra a ditadura

Produção de Walter Salles é adaptação do livro biográfico de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens Paiva, que tiveram suas vidas destruídas pela ditadura militar

Representação da Família Paiva em 'Ainda Estou Aqui'.Créditos: Alile Dara Onawale / Divulgação
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Desde que o filme "Ainda Estou Aqui" estreou nos festivais e nos cinemas do Brasil e de outros países, o novo longa-metragem de Walter Salles (Central do Brasil) se tornou um fenômeno de público e de crítica. Para se ter uma ideia, "Ainda Estou Aqui" já ultrapassou a marca de 1 milhão de espectadores, uma das maiores bilheterias no Brasil desde 2020.

O filme de Walter Salles é estruturado em duas partes distintas. Na primeira, somos apresentados ao cotidiano da família Paiva: Rubens, um engenheiro e deputado cassado pela ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985, e Eunice, uma mãe amorosa que administra o lar com dedicação, cuidando dos cinco filhos. A atmosfera na casa à beira-mar é de felicidade, permeada pelos desafios e pequenas tensões comuns a qualquer família.

Essa harmonia, no entanto, é abruptamente destruída no dia 20 de janeiro de 1971, quando Rubens Paiva é levado por policiais à paisana para prestar depoimento. O que era um ambiente de ternura e estabilidade é substituído por um clima de medo e violência. O filme retrata essa transição de forma impactante e magistral, revelando como o terror da repressão militar, antes visto como algo distante da intimidade dos Paiva, invade e se instala no coração da casa, transformando para sempre a vida da família.

Antes do fatídico 20 de janeiro de 1971, o horror da violência policial já havia, de certa forma, tocado a família Paiva. Isso ocorre quando Vera, a filha mais velha, conhecida como “Veroca” (interpretada por Valentina Herszage), é abordada pela Polícia Militar junto com amigos. O que torna “Ainda Estou Aqui” ainda mais perturbador é a forma como, na primeira parte do filme, somos levados a acreditar que a ditadura, de certa forma, não era tão violenta, parecendo agir “apenas” para sustentar “a ordem e o progresso”. O roteiro e a fotografia exploram habilmente a alienação sobre as atrocidades que ocorriam no país, especialmente nos porões da ditadura, onde militantes políticos eram torturados e mortos.

Desde então, Rubens Paiva nunca mais foi visto. Por anos, Eunice Paiva, matriarca da família e esposa de Rubens Paiva (interpretada por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro na maturidade), lutou incansavelmente por justiça, dedicando-se ao ativismo. Determinada a recomeçar, ela retomou os estudos e formou-se em Direito aos 48 anos. Enquanto isso, seus filhos — Vera, Eliana, Ana Lúcia, Marcelo e Maria Beatriz — seguiram trajetórias distintas, cada um enfrentando à sua maneira o impacto dessa tragédia em suas vidas.

Confira como estão hoje os integrantes da família que inspiraram a história retratada por Marcelo Rubens Paiva e pelo filme de Walter Salles.

Eunice Paiva

Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva faleceu em 2018, aos 86 anos, após conviver por cerca de 15 anos com o Alzheimer. Após o traumático episódio que marcou sua família, ela precisou reconstruir sua vida. Mudou-se para São Paulo com os filhos e retomou os estudos, formando-se em Direito.

Eunice se destacou como advogada e ativista, engajando-se em causas políticas e sociais, especialmente na defesa dos direitos indígenas durante as décadas de 1980 e 1990. O escritor indígena Ailton Krenak, autor de Ideias para Adiar o Fim do Mundo, destacou em entrevista à rádio CBN, no último dia 14, que "é impossível contar a história do movimento indígena na ditadura sem falar de Eunice Paiva".

Além disso, ela foi cofundadora do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (Iama), onde atuou de 1987 a 2001. Eunice também teve um papel fundamental na aprovação da Lei nº 9.140/95, que reconhece como mortos os desaparecidos políticos da ditadura militar. Em 1996, após 25 anos de luta, conseguiu obter o atestado de óbito do marido, Rubens Paiva, simbolizando uma importante conquista na busca por justiça e memória.

Marcelo Rubens Paiva

Marcelo Rubens Paiva, de 65 anos, é hoje autor do livro Ainda Estou Aqui (2015). Formou-se em Rádio e TV pela Universidade de São Paulo (USP) e em Teoria Literária pela Unicamp.

Sua trajetória como escritor começou com Feliz Ano Velho (1982), onde narra a própria história após um acidente em dezembro de 1979, aos 20 anos, quando ao mergulhar em uma lagoa, sofreu uma lesão que resultou na perda dos movimentos do corpo. Marcelo é pai de dois filhos, Joaquim, de 10 anos, e Sebastião, de 8, fruto de seu relacionamento com a filósofa Silvia Feola.

Vera Paiva

Aos 71 anos, Vera Silvia Facciolla Paiva, ou Veroca, é professora titular de psicologia na USP, onde leciona desde 1988. Suas pesquisas exploram questões de saúde pública, com ênfase em desigualdade e sexualidade. Ela também é reconhecida por sua contribuição em estudos sobre HIV e Covid-19, como no artigo publicado em 2020, Violência Contra a Mulher: Vulnerabilidade programática em tempos de Sars-Cov-2/Covid-19 em São Paulo.

Eliana Paiva

Maria Eliana Facciolla Paiva, a segunda filha do casal, nasceu dois anos após Veroca. Durante a ditadura, foi presa junto com a mãe. Em uma entrevista recente, revelou que nunca havia falado publicamente sobre o episódio, embora, na época, tenha escrito para a revista americana Newsweek buscando pressionar pela libertação de Eunice.

“Fiquei 24 horas presa. Me mostraram um trabalho de escola sobre a Tchecoslováquia e me acusaram de ser comunista. Me apalparam, bateram na minha cabeça. Em um momento, perdi a paciência, comecei a dizer que aquilo era ilegal, que eu era menor de idade. Acabaram me soltando na Praça Saenz Peña”, afirmou. Hoje, Maria Eliana é jornalista, editora de arte e professora. Também atua como pesquisadora, com foco em semiologia e teorias da imagem.

Ana Lúcia

Ana Lúcia, conhecida na família como Nalu, é amiga de longa data de Walter Salles, diretor do filme, vínculo que foi essencial para viabilizar a produção. Aos 67 anos, ela atua como matemática e empresária. Ana Lúcia comentou que o filme significa uma espécie de "vingança" pela morte do pai também em entrevista recente: “Me senti vingada por esse filme. É uma palavra horrível, né? Uma amiga disse para eu usar outra palavra. Quer saber? Torturaram e mataram o meu pai, olha a vida que a minha mãe teve, que a gente teve. E olha como eu estou me vingando: com um filme! O mundo todo está vendo a nossa história, a história que a gente precisou esconder da vida toda, que o Brasil escondeu”.

Maria Beatriz

Maria Beatriz, a caçula da família, é conhecida como Babiu. Aos 64 anos, mantém sua vida pessoal reservada e, segundo O Globo, atualmente reside em Berna, na Suíça. Em entrevista ao jornal O Globo, Babiu comentou que o filme tocou em uma "ferida aberta, que sempre sangra". Ela também destacou a força e resiliência da mãe: “Era o próprio silêncio. Não chorava. Apenas ergueu a cabeça e seguiu em frente. Sempre muito contida e racional, demonstrava calma e inteligência nas entrevistas sobre o caso do meu pai. E ela realmente era assim”, disse.

Em 27 de novembro de 2012, Maria Beatriz conseguiu uma cópia oficial do registro da prisão de Rubens Paiva, ocorrida no Destacamento de Operações e Informações — Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), no Rio de Janeiro, em 1971. O documento foi obtido por meio do então governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro.