Estreada em 1943, “Vestido de Noiva”, peça de Nelson Rodrigues, selou o início do modernismo no teatro brasileiro. Sucessora de "Mulher sem Pecado”, obra de estreia do autor, a peça coroou pela primeira vez o dramaturgo com o sucesso e a mística do autor sem pudor — e, em se tratando de Nelson, não sem ressalvas, não sem polêmicas. Inovadora pela ruptura da cronologia linear, a história das duas irmãs que disputam o mesmo noivo se desenrola através da sobreposição de planos temporais entre alucinação, memória e, como parte mais dura do universo rodriguiano, a própria realidade que se faz em referência àquelas outras duas. Na irrupção psíquica da concepção formalista de tempo-espaço, estranha à própria conturbação da vida, a peça se mantém como exemplo de inovação que não cessa de se atualizar nos seus pontos de inflexão na história do teatro brasileiro. Que “Vestido de Noiva” tenha ainda algo a nos dizer em termos de forma (e, porque não?, de vida), não é menos oportuno do que assistirmos à montagem do Grupo Oficcina Multimédia, dirigida por Ione de Medeiros, em cartaz no Centro Cultural do Banco do Brasil de Belo Horizonte, de sexta à segunda, às 20h, até o próximo dia 5 de fevereiro.
Com proposta de atualizar a peça, a montagem apela aos meios. Que o Grupo Multimédia, indicado este ano ao Prêmio Shell de Teatro por “Vestido de Noiva”, carregue o intento no próprio nome, não é detalhe. Se o meio é a mensagem, na batida citação de Marshall McLuhan, é justamente os meios pelos quais as formas se expressam que podem atualizar a peça para o nosso presente histórico. Por essa razão, como defendo, a peça é um metateatro, basicamente por dois motivos: o primeiro, por sugestão interna ao próprio texto de Nelson Rodrigues que, mesmo à época, não se adequava às expectativas formais do consenso; o segundo, digamos assim, no plano externo do modo apropriativo da montagem de Ione de Medeiros.
No que se refere ao primeiro aspecto, o drama trágico soa, em si mesmo, artificial quando transposto para o contexto contemporâneo de uma modernidade, com o perdão da intensidade, hipertardia. Aqui, claro, estou contrabandeando a tese lukacsiana. Por essa leitura, o drama trágico, conforme seja e tenha emergido de um contexto histórico específico que remonta à sociedade tradicional da Grécia antiga, não encontra lastro social na contemporaneidade que, tendo buscado expurgar a forma trágica — a saber, a seriedade e a gravidade do destino imposto pelos deuses à condição humana em todas sua precariedade —, se conforma apenas como drama, sem a qualificação. Nesse esforço moderno de exorcizar o trágico, inclusive nas leituras controversas a respeito do caráter do teatro rodriguiano, não é que seu teor tenha desaparecido, porque não desapareceu. Ele apenas ganhou, como vemos em Nelson, um ar postiço e, na melhor acepção do termo, plástico enquanto sátira do próprio universo conjugal heteronormativo.
Por esse motivo, se a afirmação trágica do texto rodriguiano já era, quando lançado, too much para um universo considerável de pessoas talhadas no moralismo dos anos quarenta, hoje ele transparece ser tão camp que, nos momentos mais dramáticos da peça, temos simplesmente vontade de rir. O mérito da atuação em cena é, com toda competência, fazermos nós, espectadores, reconhecermos isso sem culpa. É nesse sentido que a peça é, se estou sendo justo, um metateatro: ela radicaliza, através dos seus meios (escassos, diga-se), o que em Nelson já está excessivamente carregado no sentido. Os atores não só deixam como fazem transparecer que a atuação é, para todos os efeitos, uma atuação. De que estão conscientes tanto quanto nós da própria performance que executam; de que acreditam menos que você no que eles próprios interpretam — e tomando a mim mesmo como exemplo, muito menos que nada.
Essas impressões (impressões, sim, porque sou diletante no assunto) que estou identificando como metateatro, uma vez que esses elementos levam a saber que tudo não passa de atuação, não se deixa confundir com cinismo. Tudo sendo mentira torna-se a mais pura verdade. Exemplos? Parece absurdo que uma irmã roube o noivo da outra e declare seu interesse de modo descarado; é quase patético imaginar que o ódio de Lúcia, irmã de Alaíde, seja tão puro e honesto e sem sublimação em vista dos seus alvos; que Madame Clessi, a cortesã, seja posta como inspiração moral no seio de uma família pudica e de forma tão assumida por Alaíde; e que no fim de tudo, o noivo acabe ficando com aquela que ele rejeitou e rejeite aquela que ele escolheu.
Isso tudo, por óbvio, pode acontecer e acontece na realidade, ainda que em boa parte dos casos sem as sobrecargas da dramaturgia. Mas a verdade do escândalo é sempre o pormenor, indicando que o diabo mora mesmo é nos detalhes: ao escandalizar e nos levar acreditar que uma tragédia tão rococó não se passaria com a gente, a interpretação expõe a possibilidade que aconteça, sim. E a verdade, parafraseando a formulação de Walter Benjamin nas suas Passagens, não está na ideia abstrata e cerebral, mas no drapeado do vestido; e no que é complemento meu: de noiva.
O detalhe concatena num gesto a totalidade dos acontecimentos de um determinado campo de força. Assim como o lenço perdido de Desdêmona era ele próprio o ciúme de Otelo, o vestido é ele mesmo a tragédia — novamente, duplamente porque consciente da própria inadequação — da família monogâmica nos moldes que a conhecemos e sustentamos. Se pensarmos que todo vestido de noiva é, funcionalmente, uma roupa como qualquer outra para cobrir nossas vergonhas, sua excepcionalidade apenas se manifesta no que há nesse de mais fantástico e postiço. Na medida em que, aludindo à posição de rainhas vitorianas, a vestimenta matrimonial sabe-se como ilusão passageira, porque ninguém realmente acredita no que a roupa sugere no rito em que ela mesma não passa de figurino: pudico, magistral, sério, íntegro, autêntico, único… mas, apesar de tudo nos comove fazendo experiência sentimentos verdadeiros. É uma mentirinha contada que reage sobre nós como verdade verdadeira das emoções que sentimos quando nos enxergamos na farsa. Nada mais autêntico do que nos orgulharmos do nosso próprio blefe.
Não quero exceder a interpretação e fazer Susan Sontag revirar no túmulo. O que quero indicar, aproveitando para entrar no segundo motivo pelo qual experimento a peça enquanto metateatro, deve-se à montagem — essa mesma, novamente, que está agora no CCBB, de sexta à segunda, às 20h.
As decisões que nos levam a acreditar desacreditando são muitas. Nesse quadro, a duplicação das personagens, a exemplo de Alaíde, interpretada sincronicamente ao mesmo tempo pelas atrizes Camila Felix e Priscila Natany, remete formalmente aos próprios planos simultâneos do texto psicológico de Nelson. A duplicação, como quem vive sempre com duas ou mais vozes dentro de si mesmo — a polifonia de Dostoievski reivindicado no encerramento da peça — funciona ao mesmo momento em que as macas, de tempo em tempo, voltam a correr pelo cenário e aceleram o próprio destino da peça, declarando o sentimento conturbado das vidas ali retratadas em seus vários níveis e sentidos — ainda quando, como ouvi de orelhada de alguns, tudo isso leve à certa exaustão nas quase duas horas de espetáculo.
Ainda no marco das decisões realizadas pela montagem, a descaracterização de alguns personagens também é uma marca presente que nos joga para dentro do metateatro: Madame Clessi, interpretada por Jonathan Horta Fortes, se garante praticamente de cara limpa. Ela não precisa estar montada para que a enxergamos dentro de um vestido imenso. Por outro lado, Victor Velloso, Henrique Torres Mourão e Júnio de Carvalho, os rapazes do bar em Alaíde busca por Clessi, são os que interpretam em diferentes momentos Pedro, seu marido, e simultaneamente, no caso de Fortes, Torres e Carvalho, a Mulher de Véu. Assim como o minimalismo de objetos em cena assume funcionalmente todo tipo de ordem simbólica, os atores se desdobram em todas as vozes e compassos. Os movimentos incorporam os próprios critérios de ação da história e os figuram para a forma com que executam e interpretam o texto no palco.
Todas essas camadas do metateatro e as abstrações para as quais nos convoca a ter de supormos acreditar que aquele ator ou atriz que executava uma personagem até então, é, logo no momento seguinte, outra, se ligam também pelo elemento virtual do telão que em diferentes momentos toma parte do espetáculo. Desse recurso, não gosto e nem desgosto: prefiro imaginar que, como todo resto, funciona virtualmente bem no plano simbólico. Entendo que para alguns seja experienciado como excessivamente over, tende a ser um dado mais interessante do que aqueles que, imediatamente, gostam da proposta. O incômodo com o excesso que orienta o teatro-que-se-sabe-teatro só pode ser produtivo se elevado à máxima potência, a ponto de retratar uma peça dos anos 40 com o mais puro vigor da dramaturgia contemporânea disposta a passar em diante o espírito zombeteiro rodriguiano.
“Vestido de Noiva”, consta-se, não amarelou como poderia sugerir alguns que relegam Nelson Rodrigues ao cânone frio, sem mais nada relevante a dizer. É pior do que imaginam: o vestido foi, como várias vezes na peça, arrancado do corpo e agora sobrevive mesmo sem matéria. Ganhou vida própria na imaginação consciente de si. Para o bem e para o mal, estamos suficientemente esclarecidos da performance.
Ficha técnica:
Direção, Concepção Cenográfica e Figurino: Ione de Medeiros
Assistência de Direção, Figurino e Preparação Corporal: Jonnatha Horta Fortes
Elenco: Camila Felix, Henrique Torres Mourão, Jonnatha Horta Fortes, Júnio de Carvalho, Priscila Natany e Victor Velloso
Elenco em vídeo: Alana Aquino, Heloisa Mandareli, Henrique Torres Mourão, Hyu Oliveira, Jonnatha Horta Fortes e Thiago Meira
Texto: Nelson Rodrigues (1943)
Criação de luz: Bruno Cerezoli
Concepção de Trilha Sonora: Francisco Cesar e Ione de Medeiros
Mixagem e finalização de áudio: Henrique Staino | Sem Rumo Projetos Audiovisuais
Vídeo – Concepção e Edição: Henrique Torres Mourão e Ione de Medeiros
Finalização de vídeo: Daniel Silva
Produção: Grupo Oficcina Multimédia