A história e a resistência do povo Yanomami vão ocupar na Sapucaí no Carnaval 2024 em uma homenagem da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, no Rio de Janeiro. Com o refrão ‘Ya temi xoa, aê, êa!' (Eu ainda estou vivo, em Yanomae), a escola vai resgatar o ‘Brasil cocar’ e contar sobre a cultura do povo Yanomami.
O samba-enredo leva o nome de “Hutukara”, que é a terra-floresta, segundo o glossário divulgado pelo Salgueiro a poucos dias do carnaval. Essa "terra-floresta", por sua vez, é o chão de Omama, Deus da criação para o povo Yanomami. “Hutukara” também faz referência ao céu ancestral que desabou sobre a terra nos primórdios, formando a floresta que cobre o nosso planeta hoje.
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No refrão, é entoada a frase principal “Ya temi xoa, aê, êa! Ya temi xoa, aê, êa!”, que significa “Eu ainda estou vivo” em Yanomae, uma das seis línguas da família Yanomami. Estar vivo, nesse caso, significa mais do que a condição física, mas também a boa saúde mental e emocional.
A homenagem acontece um ano após a declaração de emergência sanitária na Terra Indígena Yanomami pelo Governo Federal, quando foi constatada a prática de genocídio contra os povos que habitam o território. O cenário era de completa tragédia, com crianças com quadros de desnutrição grave, além de muitos casos de malária, infecção respiratória aguda (IRA) e outras doenças.
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O samba do Salgueiro é mais que uma homenagem, é também um alerta para que a atenção nunca deixe de se voltar aos povos indígenas e que “a chance que nos resta é um Brasil cocar”. Há algumas semanas, o presidente Lula (PT) se reuniu com 11 ministros para lançar um novo plano de combate à invasão à TI Yanomami, que ainda persiste.
Ya temí xoa, aê-êa / Meu Salgueiro é a flecha pelo povo da floresta / Pois a chance que nos resta é um Brasil cocar
A elaboração do samba contou com a participação de Davi Kopenawa, maior liderança do povo Yanomami. Durante a grande final da disputa para escolha do samba, o líder afirmou: “Vocês não conhecem o meu povo, mas agora estão conhecendo. Sou a liderança Yanomami que representa 30 mil [indígenas] do território de Roraima e do Amazonas”.
Davi Kopenawa também visitou a comunidade do Salgueiro, na Tijuca, Zona Norte do Rio, para contar sobre seu povo e conversar com os moradores e salgueirenses. Em um vídeo da campanha do Salgueiro contra o marco temporal, Kopenawa afirma que conheceu seus parentes, as pessoas negras, que enfrentam o mesmo problema que seu povo.
O carnavalesco Edson Pereira defende que o desfile é “a oportunidade que a gente tem de reação de todos aqueles que precisam conhecer a cultura Yanomami”. Em uma carta para a comunidade salgueirense, ele afirma que “o respeito só pode nascer da admiração, não da pena. Afinal, o genocídio visto hoje mostra mais quem são os napë (não indígenas) do que sobre os Yanomami”.
Bruno Pereira e Dom Phillips
O samba enredo também vai relembrar o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips no Vale do Javari, no Amazonas, em junho de 2022. Os dois foram mortos por seus trabalhos em defesa dos indígenas da região.
Antes da sua bandeira, meu vermelho deu o tom / Somos parte de quem parte, feito Bruno e Dom”.
O Salgueiro explica que “eles ganham citação em nosso samba por terem sido ‘brancos’ que entenderam verdadeiramente os povos indígenas. Mesmo que seus corpos não estejam mais aqui, seus pensamentos permanecem”.
Confira o samba enredo
Ya temí xoa, aê-êa
Ya temí xoa, aê-êa
Meu Salgueiro é a flecha pelo povo da floresta
Pois a chance que nos resta é um Brasil cocar
Ya temí xoa, aê-êa
Ya temí xoa, aê-êa
Meu Salgueiro é a flecha pelo povo da floresta
Pois a chance que nos resta é um Brasil cocar
É Hutukara, o chão de Omama
O breu e a chama, deus da criação
Xamã no transe de Yãkoana
Evoca Xapiri, a missão
Hutukara ê, sonho e insônia
Grita a Amazônia antes que desabe
Caço de tacape, danço o ritual
Tenho o sangue que semeia a nação original
Eu aprendi o português, a língua do opressor
Pra te provar que meu penar também é sua dor
Falar de amor enquanto a mata chora
É luta sem flecha, da boca pra fora
Falar de amor enquanto a mata chora
É luta sem flecha, da boca pra fora
Tirania na bateia, militando por quinhão
E teu povo na plateia vendo a própria extinção
Yoasi que se julga família de bem
Ouça agora a verdade que não lhe convém
Yoasi que se julga família de bem
Ouça agora a verdade que não lhe convém
Você diz lembrar do povo Yanomami
Em 19 de abril
Mas nem sabe o meu nome e sorriu da minha fome
Quando o medo me partiu
Você quer me ouvir cantar em Yanomami
Pra postar no seu perfil
Entre aspas e negrito, o meu choro, o meu grito
Nem a pau, Brasil
Antes da sua bandeira, meu vermelho deu o tom
Somos parte de quem parte, feito Bruno e Dom
Kopenawas pela terra, nessa guerra sem um cesso
Não queremos sua ordem, nem o seu progresso
Napê, nossa luta é sobreviver
Napê, não vamos nos render
Ya temí xoa, aê-êa
Ya temí xoa, aê-êa
Meu Salgueiro é a flecha pelo povo da floresta
Pois a chance que nos resta é um Brasil cocar
A composição do samba é de Pedrinho da Flor, Marcelo Motta, Arlindinho Cruz, Renato Galante, Dudu Nobre, Leonardo Gallo, Ramon Via13 e Ralfe Ribeiro
Glossário
- Hutukara: a terra-floresta.
- Omama: o demiurgo. É o Deus da criação para os Yanomami.
- Xamã: Guerreiros do mundo espiritual. Eles fazem a conexão entre o mundo visível e o mundo invisível, atuando como escudos contra os poderes maléficos oriundos dos humanos e dos não-humanos que ameaçam a vida de suas comunidades.
- Yakoana: substância extraída das raspas de uma árvore que possui efeito alucinógeno. É utilizada nos rituais xamânicos.
- Xapiris: são os espíritos de luz, defensores da terra-floresta. Só são vistos pelos xamãs após o uso da yakoana.
- Yoasi: o irmão de Omama. É o responsável pela criação da morte e da escuridão.
- Kopenawa: o sobrenome da principal liderança Yanomami significa “marimbondo”. É melhor não mexer com marimbondo!
- Napê: termo para designar todos os forasteiros, como o homem branco e os garimpeiros.
- Ya Temi Xoa: expressão de resistência que significa “Ainda estou vivo!”.