Nos últimos dias, um fato inusitado tem ocorrido em relação à claque bolsonarista nas redes sociais: inúmeros perfis de influenciadores e parlamentares da extrema direita estão empenhados na divulgação de um filme e afirmam que o objetivo da "elite" é esconder tal produção do grande público. Puro delírio.
O filme em questão chama-se "O Som da Liberdade" (Sound of Freedom/2023), dirigido por Alejandro Monteverde. Narra a história real do agente da CIA Tim Ballard (Jim Caviezel), que trabalha em um departamento da agência estadunidense focado em desbaratar quadrilhas que traficam crianças para crimes sexuais.
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Missão divina
Após uma bem-sucedida primeira missão, Tim Ballard trava um diálogo com a criança chamada Miguel, que lhe conta que a sua irmã também foi sequestrada e ainda está sob controle da quadrilha. Com isso, Ballard pede autorização para ir à Colômbia e tentar resgatar a irmã do garoto.
A partir desse momento, o filme mergulha em mediocridade, estereótipos racistas e delírios cristãos. Vamos por partes: na Colômbia, ele faz uma parceria com "Vampiro", homem que atuava no narcotráfico, mas, após um chamado de Deus, mudou de lado e ajuda a desbaratar quadrilhas que traficam pessoas.
O próprio Tim Ballard também entende que atende a um chamado divino, prova disso é que, após a sua primeira busca pela garota fracassar, ele recebe um chamado da CIA para que volte imediatamente. Diante disso, ele resolve enfrentar a burocracia, se demite e monta um grupo para enfrentar as quadrilhas.
Ao justificar a sua demissão para o seu chefe na CIA, Tim Ballard diz a seguinte frase para ele: "os filhos de Deus não estão à venda". É com esse espírito que ele vai para a Colômbia.
"Latinos selvagens"
Além de ser uma produção completamente apelativa, o filme "O Som da Liberdade" é profundamente racista, o que fica evidente na maneira como ele contrapõe Tim Ballard e os personagens colombianos: Ballard é retratado como angelical, ingênuo e saudável, enquanto os latinos são apresentados como rudes, fumantes, quase sempre bêbados e violentos. Isso remete à clássica definição colonial sobre os habitantes da América Latina.
Os filtros utilizados para demarcar essas diferentes civilizações também gritam na tela, visto que as cenas nos EUA são sempre limpas e harmoniosas, enquanto do lado colombiano prospera o caos, a sujeira e a corrupção.
Há outro paralelo que podemos fazer com o personagem Tim Ballard e a maneira como ele é retratado no filme: trata-se de um missionário que veio libertar as crianças das mãos dos selvagens. Ballard é o tipo homem branco desbravador, mas a sua missão colonial, que também é catequizadora, tem por objetivo salvar as crianças, pois essas ainda podem ser modeladas conforme os valores coloniais.
Não é à toa que o filme, em momento algum, toca no ponto do tráfico de pessoas jovens e adultas, mas sim nas crianças. A base do roteiro é a mesma que alimenta o pânico moral da extrema direita, que cresce em cima do “tirem as mãos das crianças” e transforma tudo em “ideologia de gênero” e fim da família.
Extrema direita abraça o longa-metragem
Todo esse clima delirante e cristão faz com que "O Som da Liberdade" transforme algo grave, que é o tráfico de corpos, em uma missão para apenas pessoas iluminadas por Deus. No outro campo, estão as pessoas que viraram as costas, na leitura do filme, “o sistema”.
Não à toa, o filme foi abraçado pela extrema direita dos EUA e por grupos fundamentalistas que lançaram uma intensa campanha e colocaram o filme no Top 10 das maiores bilheterias. No Brasil, bolsonaristas tentam fazer o mesmo e, caso a bilheteria fracasse, vão culpar a "elite cultural", esse argumento já corre por aí.
Ainda que retiremos da análise todo o delírio cristão e a ideia do "homem branco salvador" de crianças das mãos dos "latinos selvagens", o que resta é um cinema de quinta categoria, com fotografia cafona e atuações que beiram o sofrível.
Destaque para a trilha sonora, uma das coisas mais irritantes do filme: com o objetivo de forçar lágrimas e comoção, somos torturados por 2h15 com músicas cafonas e melodramáticas que não cumprem a sua função, no caso, nos deixar um pouco tristes e esquecer a barbárie que esse longa-metragem é.