Caía um toró daqueles que Nelson Rodrigues chamaria de bíblico. Daqueles de Noé mandar soltar a âncora da Arca e juntar os animais porque o dilúvio havia chegado.
No entanto, dentro da casa noturna em Ipanema, ninguém estava nem sabendo do temporal que caía lá fora. Ao som de uma tremenda banda, com todos os instrumentos de couro, corda e sopro de direito, cantor e vocal, o samba comia solto e a galera lotava o ambiente.
Muitos ainda sentados, mas a maioria já de pé, dançando e cantando junto, alguns agarradinhos, outros pulando como se fosse carnaval, seguindo a máxima de Gonzaguinha: "a plateia só deseja ser feliz".
Mas nem todo mundo está nesse clima. Há um casal, sentado numa mesa bem na frente da banda, discutindo aos berros, porque, com o som nas alturas, é a única maneira de ser ouvido.
Nem sempre o casal esteve assim. Até certo ponto pareciam pombinhos apaixonados, como outros casais presentes. Mas alguma coisa aconteceu que fechou o tempo e caiu a tempestade, como ocorre lá fora.
A banda está agora tocando um medley de sambas animados, preparando para a pequena pausa que farão para irem ao banheiro ou "molhar a palavra", se me entendem. Os trechos dos sambas são sempre os mais animados, preparando o final apoteótico: um tchan, seguido de silêncio total.
Pois bem aí, nesse tchan, seguido de silêncio total, o homem do casal da frente do palco foi pego de surpresa.
Ele estava empolgado, falava alto, mas a menina que o acompanhava não o ouvia. Até que ele se levantou e gritou o mais alto que pôde:
— Eu sei que eu sou um canalha!
Bem na hora em que o tchan se deu... Então, o grito dele ecoou no silêncio da sala. Todos ouviram sua insólita confissão aos berros:
— Eu sei que eu sou um canalha!
O silêncio que seguiu por instantes foi atropelado por risadas e gargalhadas incontroláveis. O casal parecia espantado com a fama súbita, especialmente o homem, que permanecia de pé, congelado, atônito.
Um coro começou a zoar para descontrair (lembrem-se de Gonzaguinha...), em uníssono cantando "Canalha, canalha, canalha".
O homem, parecendo dar razão ao coro, começou a regê-lo, o que acabou por desanimar os coristas.
As pessoas passaram a comentar entre si o acontecido, a maioria ainda rindo da confissão tonitruante, como os trovões que vinham lá de fora e que já são ouvidos agora, com o silêncio da banda.
Duas senhoras, que estavam na mesa ao lado do casal, se levantaram, levando às mãos seus drinks coloridos, e foram dar apoio à menina, que escondia o rosto entre as mãos, encabulada.
O homem começou a falar com outros homens que o cercavam, dando explicações, aparentemente.
Uma senhora, atrás, comentou que eles estavam bem "até o samba do Cartola da 'traição', 'Acontece'".
Só que o único samba de Cartola que havia tocado até ali não foi "Acontece", mas "Tive sim". E não é um samba de traição, mas um samba em que Cartola confessa que tivera um grande amor antes do amor por sua esposa, dona Zica. Nada a ver com traição.
Mas a senhorinha atrás contava para o grupo, que aceitou a conversa, sem nem contestar o título do samba, quanto mais seu sentido. A história parecia verdadeira apenas porque dava um sentido ao irracional grito confessional de canalha.
Uma garçonete agora serve a jovem com um dos drinks coloridos da casa, provavelmente pedidos pelas senhoras que conversam com ela. As duas alternam bebericos nos drinks e balanços no corpo, ainda embaladas pelo samba e o álcool.
Mais para a esquerda, uma senhora sentada diante de um homem de finíssimo bigode com uma garrafa de guaraná à frente, falou grosso, para que todos ouvissem:
— Todo homem é, foi ou será canalha um dia.
Houve aplausos. Mas também vaias. Um homem de voz fina opinou:
— Alguma ela deve ter aprontado.
Quase foi linchado. Derrubaram sua bebida e um vizinho de mesa aproveitou o tumulto e roubou seu prato de salaminho.
O "canalha" devagarinho se aproximou da mesa e voltou a se sentar, sem dirigir a palavra à menina ou ela a ele.
As idosas voltaram para suas mesas, onde acabaram de chegar dois novos drinks, de cores ainda mais esfuziantes. Elas trataram de esvaziar seus copos antigos para caírem dentro dos novos. Já com os quadris balançando, animadas.
E assim, de repente, quando a gente se dá conta, a banda já está tocando novamente. O povo novamente está feliz, cantando, dançando e comemorando a noite.
Até o casal do "canalha" passa do silêncio à conversa. Num momento, ele novamente se levanta, o que faz quem o observa temer por nova confissão, mas ele apenas a pega para dançar, e logo estão de rostos colados, em seguida fecham a conta e saem.
Quando chegam lá fora a tempestade também acabou. Foi chuva de verão,