CRÔNICA DE DOMINGO

Drummond e o sentimento do mundo num botequim de quinta

Era ou não o poeta naquele botequim?

Créditos: Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Escrito en CULTURA el

Dez pras sete da manhã de um dia de semana. Não sexta, porque não havia aquele clima de final de semana. Devia ser quarta ou quinta. Vamos ficar com quinta. 

Ele já estava pela metade da cerveja, que tomava para rebater a ressaca da noite anterior. Bebia devagar não só porque a cerveja estava difícil de descer mas para fazer o que o leva a beber num bar — mesmo neste botequim de quinta — e não em casa: observar as pessoas.

O pequeno botequim está lotado de pessoas que, como passarinhos no ninho, esperam com os biquinhos sedentos pelo café que o funcionário está preparando na máquina. Ele já lavou o grande coador de pano, o colocou cuidadosamente na máquina, despejou ali um pacote de café Capital e agora com o fervedor recolhe água quente da própria máquina e a despeja sobre o pó.

Entram no bar dois vendedores de bijuterias, cabeludos, castelhanos e se dirigem ao final do bar. Só aí eu o percebo. Heráldico, olhando para a frente e com o pensamento distante, tem uma pequena xícara de café já postada à sua frente.

É o poeta Carlos Drummond, dizem meus olhos. Mas ele está morto, me lembra minha ainda presente memória. Ou o que resta dela.

Ponho um pouco mais de cerveja no copo para desviar meu olhar do "poeta", porque, sendo ou não ele, ninguém gosta de ser observado assim. Ainda mais se a pessoa se coloca quase ao final do botequim, como ele.

O atendente do bar pega a primeira leva do café e a despeja de volta na máquina. Em seguida, abre novamente a torneirinha, enche a garrafa, se dirige ao final do bar e serve o homem magro, com camisa de manga comprida abotoada nos punhos. Ele sorri o mesmo sorriso tímido de Drummond e começa a bebericar o café com um biquinho, pois ainda está muito quente.

Ninguém reclamou da precedência daquele senhor, como que lhe reconhecendo o direito de ser o primeiro a ser atendido.

Auto-caricatura CDA

Aliás, na expectativa do café o bar é tomado por um silêncio estranho, pois uma coisa sagrada nos botequins é a conversa, de preferência a fiada. Silêncio que foi quebrado por um dos vendedores de bijuteria que perguntou a dona Maria qual seria o prato do dia.

Dobradinha — ela respondeu, diante da imensa panela de pressão chiando, enquanto cortava umas batatas. Dona Maria é muito conhecida na região, principalmente pelas sardinhas que frita no fubá em dia de feira, que enchem a rua com seu cheiro característico e o bar de fregueses, especialmente porteiros, mas não apenas eles, porque vem gente até de outros bairros para comer as sardinhas de dona Maria.

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Todos servidos, o botequim recomeça sua vida, alguns pedindo um pão na chapa, mas a maioria fazendo uma observação ou outra sobre o futebol do dia anterior, o inferno dos transportes, a dureza da vida.

Menos o homem que parece CDA. Ele está sério, compenetrado, olhando para a frente mas com a cabeça distante,de vez em quando voltando à realidade e ao cafezinho na xícara, que bebe em pequenos goles. É incrível sua semelhança com o poeta.

Não consigo parar de olhar para ele. No que estará pensando? No que estaria pensando se fosse mesmo nosso maior poeta?

O burburinho do bar de repente fica em suspenso e eu vejo o homem alto, magro, de camisas de manga comprida abotoadas no punho, como o via pelas ruas de Ipanema de vez em quando, virar o último gole de café como se em câmera lenta, pegar um dinheiro certo no bolso da calça, colocá-lo sobre o balcão e se dirigir à saída, passando bem a meu lado com seu sorriso tímido no rosto.

O atendente o cumprimenta, quando ele já está na rua, "Bom dia, poeta!". Ele para, se vira e responde com um um gesto da mão espalmada, a mesma mão que escreveu que "tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo".

Era ele mesmo "nesse amanhecer mais noite que a noite". O poeta está vivo.

Tudo isso num botequim de quinta, numa quinta. Porque agora tenho certeza do dia certo da semana, porque quinta é o dia de dobradinha na cozinha de dona Maria.