“É um livro-reportagem que nasceu a partir de um extenso trabalho de campo e de uma escuta qualificada. Além da realização de mais de 200 entrevistas, fizemos uma ampla investigação sobre as causas do rompimento da barragem mineira e o quanto a mineradora Vale sabia dos riscos”, afirma a escritora e jornalista juiz-forana Daniela Arbex, em entrevista à Revista Fórum.
A obra “Arrastados: Os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil”, fruto de um extenso trabalho de apuração e em memória às vítimas do desastre de 25 de janeiro de 2019, conquistou na última terça (10), o 45° Prêmio Vladimir Herzog, na categoria livro-reportagem, considerado o mais tradicional prêmio jornalístico do Brasil.
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O desastre (previsto) em Brumadinho, causado pelo colapso da barragem da mina Córrego do Feijão da Vale, é um dos mais devastadores em termos de perda de vidas humanas e em tempo de resgate já vistos no mundo - totalizando mil dias de buscas. Um caminho de destruição, marcado por lama e resíduos de mineração, se alastrou por uma distância superior a 300 quilômetros e derrubou tudo o que tinha pelo caminho: torres de energia, trens de mercadorias, pontes, residências, vegetação, fauna e, segundo os dados oficiais, resultando na morte de 272 pessoas. Em sua maioria, desaparecidas por vários dias seguidos.
Com uma escrita humanizada, um olhar aguçado e uma narrativa permeada de detalhes, Daniela reconstrói o cenário da tragédia na Mina do Córrego do Feijão. Enquanto repercutia a tragédia naquele ano, não se sabia como tudo havia acontecido. A obra é monumental em conseguir resgatar o registro desde o momento em que a barragem se rompe até o longo período de buscas pelos bombeiros nos primeiros dias. Expressando “a dor de centenas, de milhares, acolhendo o luto e celebrando os sobreviventes” (p. 12, Arrastados).
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“Arrastados talvez seja a obra que eu tenha parido com mais dor. Além do horror da história, perdi meu irmão de covid-19 durante o processo de escrita. Um menino lindo de 49 anos, produtor de cinema e TV, pai de três filhos. Enfim, 2021 foi um ano muito difícil para o mundo” - Daniela Arbex (p. 12, Arrastados).
Ao receber a notícia de que seu livro-reportagem havia ganhado a 45° edição do prêmio, Daniela escreveu uma mensagem em suas redes sociais. “Que os filhos de Minas Gerais e de outras partes do Brasil sejam sempre lembrados e que a gente jamais permita que a mineração transforme seres humanos em coisas em meio à lama que nasce da impunidade”, afirma. Além de colocar em destaque a fala de Helena Taliberti, que perdeu os filhos Camila e Luiz Taliberti, a nora Fernanda Damian e o neto Lorenzo no rompimento da barragem. “Tentaram nos enterrar. Não sabiam que éramos sementes”.
Para a Revista Fórum, a jornalista contou sobre como se deu o processo de investigação e escrita da obra.
“Fiquei um ano acompanhando as famílias em Brumadinho e as ações do Corpo de Bombeiros”, lembra ela. “Também passei meses no IML, em Belo Horizonte, para entender o trabalho de identificação das vítimas pelos legistas mineiros. Conseguimos um material tão denso e rico que nos permitiu reconstituir, quase que em tempo real, as 96 horas após o rompimento ocorrido às 12h28 do dia 25 de janeiro de 2019”.
Na opinião de Daniela, se a Covid-19 é o maior desastre sanitário do Brasil e do mundo, “Brumadinho também responde pela maior tragédia humanitária do país. Trata-se de uma tragédia anunciada que afetará diversas gerações”. Vale lembrar que meses depois da tragédia, moradores ficaram com graves sequelas, aumentando o consumo de antidepressivos e de tentativas de suicídio.
No livro, uma pesquisa indica dados sobre possíveis rompimentos de barragem para conhecimento público, isto é, Brumadinho não foi um caso isolado: a possibilidade de novos rompimentos pode ser iminente em alguns locais. “O Relatório de Segurança de Barragens de 2020 aponta que há 122 barragens em situação crítica, em 23 estados. A mineração, com suas práticas arcaicas de poder, coloca em risco a segurança de todos” (p. 14, Arrastados). “Brumadinho nunca mais? É a pergunta que Daniela Arbex nos faz, ao final da leitura. O slogan, usado pelo presidente da Vale depois do desastre de Mariana, não passou disso, slogan” (p. 14, Arrastados).
‘Construção da memória coletiva’
Segundo a jornalista, esse é um livro “que narra o colapso da barragem e suas consequências pelo olhar dos trabalhadores da multinacional”. Além disso, “é um esforço de construção da memória coletiva do país, papel fundamental do trabalho jornalístico”.
Somado a “Arrastados”, Daniela é autora de outros quatro livros investigativos como “Cova 312” (ora que investiga o destino de um guerrilheiro durante a Ditadura Militar), “Holocausto Brasileiro” (livro sobre o genocídio de 60 mil pessoas no maior hospício do país, em Minas Gerais), “Os Dois Mundos de Isabel” (obra sobre a centenária que acudiu milhares de pessoas) e “Todo Dia A Mesma Noite” (livro sobre o dia em que várias pessoas perderam a vida na Boate Kiss).
Dois destes livros já foram para as telas: “Holocausto Brasileiro” virou um documentário da HBO em 2016 e, em 2021, foi adaptado como uma série pelo Canal Brasil e Globoplay. Em 2023, o Globoplay e a Netflix lançaram suas próprias adaptações de “Todo Dia A Mesma Noite”. O livro “Arrastados” também será adaptado para uma série pelo Globoplay.
O minério que cobria os corpos era tão denso que impediu radiografias. O filme de raio X ficou velado. Só depois de lavados os cadáveres, os legistas descobriram que, ao serem arrastadas, as vítimas tinham perdido a pele que lhes dava cor. Assim, o preto, o pardo e o branco desapareceram. Todos os corpos, do operário ao diretor, tinham a mesma coloração. “Difícil não pensar no simbolismo da imagem com a qual se depararam. Em um mundo com tanto racismo estrutural e toda espécie de preconceito imposto pela cultura da branquitude, as vítimas de Brumadinho estavam todas iguais. Elas exibiam a cor branca revelada pelo subcutâneo, já que a pele sofrera abrasão.” (p. 15, Arrastados).
Prêmio Vladimir Herzog
A escritora, que não esperava ganhar o prêmio, expressou profunda gratidão pelo reconhecimento das narrativas não contadas da tragédia e que até hoje permanecem sem solução. Para ela, o prêmio possui um enorme significado para o jornalismo brasileiro e para a sociedade brasileira. “Ele simboliza a luta travada pelo jornalismo profissional brasileiro ao longo da história contra a violação de direitos e em defesa intransigente da democracia”.
O Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos foi criado em 1979, ainda durante a ditadura civil-militar brasileira, em homenagem a Vladimir Herzog, morto pelo regime nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Desde então, o prêmio tem sido um importante instrumento de luta pela democracia e pelos direitos humanos. Em sua primeira edição, o prêmio ajudou a promover a anistia política, que foi concedida em agosto de 1979. Também contribuiu para a mobilização pela democracia, que culminou na eleição direta para presidente da República em 1989.
O Instituto Vladimir Herzog participa da premiação desde o ano de sua inauguração, em 2009. O objetivo do prêmio é homenagear jornalistas que se destacam na cobertura de assuntos ligados aos direitos humanos e à promoção da cidadania, comprometidos com o interesse público e que investigam e denunciam violações de direitos. Até o momento já foram premiados mais de 600 jornalistas do Brasil e da América Latina.
No dia 24 de outubro, às 20h, em São Paulo, os ganhadores serão homenageados na cerimônia de premiação. No mesmo dia, eles terão a oportunidade de realizar uma roda de conversa no teatro da Puc-São Paulo.
Veja todos os premiados da 45ª edição:
Categoria Vídeo
“Vale dos isolados”, de Sônia Bridi e equipe, da TV Globo/Globoplay
Categoria Multimídia
“Ouro líquido”, de Rebeca Borges e equipe, do Metrópoles
Categoria Arte
“Belicismo e extemismo: a política de militarização do poder”, de Vítor Massao, do Insituto Update
Categoria Áudio
“Projeto Querino”, de Tiago Rogero e equipe, da Rádio Novelo
Categoria Texto
“A conversa rasa do Brasil”, de Gabriela Mayer, da Revista Piauí
Menção honrosa
“Os defensores não defendidos”, de Catarina Barbosa e Talita Bedinelli, da Samaúma
Categoria Fotografia
“Mutilados”, de Márcia Foletto, do Globo
Menção honrosa
“As vítimas da copa do mundo do Catar”, de Yan Boechat, da Band Jornalismo
Categoria Livro-reportagem
“Arrastados”, de Daniela Arbex, da Editora Intrínseca
Categoria Menção honrosa
“Poder camuflado – Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro”, de Fabio Victor, da Companhia das Letras