Enfim, mesmo após muitos percalços desde as altas taxas de contaminação da ômicron, estamos vendo as salas de cinema serem retomadas e reocupadas de novo por seu público, num estímulo altamente necessário para não fecharem desde a pandemia. E não é apenas de “Batman” que sobrevive o circuito comercial. Com uma longeva temporada, o filme brasileiro “Eduardo e Mônica” já está entrando em seu terceiro mês em cartaz, sem deixar de ter público em todas as sessões, num feito raro ultimamente.
E, com total mérito para tanto, podemos agora nos juntar ao coro completamente justificado: Após muitos adiamentos devido ao fechamento intermitente das salas de cinema desde 2020, a longa espera valeu a pena com a inclusão no panteão de sucessos nacionais deste belo filme que é “Eduardo e Mônica” de René Sampaio. Apaixonante!
Uma narrativa que não tenta contar ou relatar o conteúdo da famosa letra da música homônima de Renato Russo, e prefere mostrar e ambientar situações que falam por si. Inteligentemente, o roteiro muitas vezes dispensa palavras e trabalha ao invés disso com a sublimação de acontecimentos para agilizar a trama – independente de não estar se dizendo que as palavras usadas não possuam seu valor, já que o elenco conta com algumas ótimas tiradas nos diálogos rápidos e irônicos.
Mas é nas experiências do casal-título – em que seus intérpretes menos precisam falar, e sim sentir – que a verdade acontece. Sem falar que a dupla principal está excelente, encarnada por Gabriel Leone (“Minha Fama de Mau” e “Piedade”) e Alice Braga (“Cidade de Deus” e “Eu Sou a Lenda”), respectivamente, com muita química e profundidade em suas sintonias e diferenças como par romântico.
Eles dão credibilidade às questões da música que ganham, aqui, tridimensionalidade, num roteiro escrito com bastante representatividade e sagacidade por Claudia Souto, Jessica Candal, Matheus Souza e Michele Frantz. Desde a diferença de idade (que não é uma questão, apenas portão de entrada para a diferença de maturidade emocional, esta sim importante) ao luto que ambos sofrem, por terem sido criados por famílias partidas de certo modo. E até mesmo as diferenças ideológicas entre os dois personagens da letra original servem muito bem ao filme perante o tempo presente, atualizando uma analogia com a recente polarização social entre uma posição mais conservadora e outra revolucionária.
Vale ressaltar, igualmente, o trabalho do restante do elenco igualmente, pois alguns coadjuvantes roubam a cena, desde o melhor amigo de Eduardo (vide os versos da canção: “Um carinha do cursinho do Eduardo que disse que tem uma festa legal e a gente quer se divertir”), encarnado por Vitor Lamoglia (do seriado premiado internacionalmente “Ninguém Tá Olhando” da Netflix) à participação especial do Fabrício Boliveira como referência a outra adaptação musical de Renato Russo nos cinemas, "Faroeste Caboclo" (também dirigido por René Sampaio).
Há sacadas marcantes, como a medicina dar camadas a mais de desenvolvimento e ambição na carreira para Mônica; bem como o fato de Eduardo gostar de novela e de jogar futebol-de-botão com o avô (aqui interpretado por Otávio Augusto) dar outras motivações de referência em contrastes bastante interessantes.
Afinal, pela composição original, ela precisava ser mais consciente do mundo ao redor e mais engajada politicamente, não por desinteresse dele, porém por tempo de vida mesmo... É algo que ela vai transmitir sem condescendência nem didatismo, porque, afinal, o romance acertadamente jamais a coloca no lugar substitutivo de mãe à la complexo de Édipo – Quantas vezes já vimos no cinema homens mais velhos namorarem mulheres mais jovens e, logo agora, por que teria de ser uma questão psicanalítica a situação inversa?.
Fatos simples da letra que parecem abarcar um mundo de vivências, como a parte das sessões de fotografia e de viajarem juntos, ou de Eduardo deixar o cabelo crescer, vão se tornando marcadores e beats de roteiro para criar montagens temporais e experiências muito mais profundas do que se o roteiro inventasse mil situações explicadas demais que tentassem justificar esses atos corriqueiros do dia a dia. No filme, simplesmente se deixa estar. Você acompanha um ensaio fotográfico deles com tanta naturalidade com que aceita as viagens com os amigos hippies dela, mais voltados para as artes do que a maioria das referências dele mais caretas. – metáforas de que podemos sim superar nossas diferenças e alimentar mutuamente experiências em comum que não excluam um ao outro.
Além de ser devido ressaltar o quanto a poesia dos versos continua presente de forma diegética – seja na intertextualidade das canções e excelente trilha sonora, a contextualizar o momento histórico em que o filme se passa (dá vontade de colecionar todas as músicas no spotify), bem como nas artes dos protagonistas, em leituras recitadas até de versos em alemão, ou nas instalações e exposições que Mônica vem a montar com muitos truques visuais e ângulos pelos quais somos estimulados a ver a vida sob outras perspectivas. Exatamente por estas razões não é acidental a escolha da fotografia (Gustavo Hadba) e da edição (Lucas Gonzaga e Letícia Giffoni) em decupar algumas cenas do casal principal filmadas de forma tão bela com iconografias famosas de Brasília.
Tudo isto nos provoca outra visão afora das luzes e das sombras já conhecidas, a nos inspirar numa reocupação e reapropriação afetuosa de um lugar que anda marcado nos últimos anos pela perda da democracia! Mais do que nunca estamos precisando de amor nesses tempos difíceis que o Brasil e o mundo estão passando, pois 2022 será um ano muito importante. Então, amemos muito! Não só amor no Distrito Federal, e sim no país inteiro para a democracia voltar! E que o merecido sucesso deste filme, até certo ponto comercial e pop, sim, mas não como deméritos, e sim por sua comunicação ampla com o público e pegada autoral e inspiradora, possa nos ajudar a recomeçar a amar uns aos outros, superando nossas diferenças por um bem comum a partir da arte e da cultura tão aguerridas.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.