Por Estevan Mazzuia *
Nas últimas semanas, o gado esteve em alta, no Brasil.
O tal touro dourado, réplica do símbolo da Wall Street, que tentaram enfiar goela abaixo do paulistano, em frente à sede da B3, na Rua XV de Novembro, coração da capital bandeirante, foi alvo de diversos protestos, e acabou sendo retirado do local, por determinação da municipalidade, a quem não se havia requerido a devida licença para instalar o bovídeo cenográfico.
Os idealizadores da obra, símbolo do mais selvagem capitalismo, tinham a pretensão de torná-la um ponto turístico da cidade, num momento em que o número de miseráveis aumenta desenfreadamente, ossos são vendidos em categorias (ossos “de primeira” e “de segunda”), e a carne vermelha já se tornou mais um símbolo daquele período que os boçais de plantão qualificam de “comunismo no Brasil”. Obviamente, deu errado.
Também ganhou destaque, em meio àquilo que foi anunciado como “uma prova com a cara do governo”, a questão do ENEM utilizando um trecho da canção “Admirável Gado Novo”, de Zé Ramalho, aludindo à passividade social de grande parte de nossa população, e passando por cima da renitente ignorância dos censores.
O lado ruim desses dias bovinos é que a carne mais barata no mercado continua sendo a carne negra. No Dia da Consciência Negra, a turminha que não é racista, pois “até tem empregada negra”, voltou a inundar as redes sociais com as famosas alusões ao “Dia da Consciência Humana”, respaldados por toda a sorte de vídeos de Morgan Freeman.
Em meio a tudo isso, resolvi trazer a esta coluna o Império de Casa Verde, pela primeira vez. Fundada em 1994 por dissidentes da tradicional Unidos do Peruche (que ainda não passou por aqui), a agremiação paulistana apresentou o enredo “Do Boi Místico ao Boi Real – De Garcia D´Ávila na Bahia ao Nelore – O Boi que come capim – A Saga pecuária no Brasil para o Mundo” no carnaval de 2006.
Desenvolvido por uma Comissão de Carnaval formada por Júnior Marques, Carlos Lopes, Roberto Szaniecki e Delmo de Moraes, o enredo foi defendido por 3000 componentes, distribuídos em 24 alas e cinco alegorias.
O samba, composto por Rafael, Junior Marques e Carlos Junior, também responsável por puxá-lo na avenida, tinha o seguinte refrão:
“É lindo ver meu Império / Um show de cores ao luar
Cantando para o mundo inteiro / A saga deste gado brasileiro.”
A escola defendia o título de 2005 falando das origens mitológicas do boi, passando por sua importância nas primeiras civilizações, a chegada ao Brasil e relevância para nossa alimentação, nosso folclore, e nossa economia.
A comissão de frente era formada por tritões, seres da mitologia grega que habitavam os oceanos, e viajavam pelos continentes, recolhendo suas influências.
Dois enormes tigres, animal símbolo da escola, vinham sobre o imponente carro abre-alas.
O primeiro setor trazia alas representado os primeiros desenhos do animal, ainda em pinturas rupestres, seguindo pelas civilizações antigas, como o Egito (o boi Ápis como a reencarnação de Osíris), e atuais, como a Índia, onde o boi é um animal sagrado.
Um dos carros mais luxuosos de todo o carnaval paulistano daquele ano trazia a representação de um templo hindu, e do touro Nandi, que teria servido de montaria a Shiva.
Comandada pelo Mestre Zoinho, a bateria estava fantasiada de assírios, que utilizavam o boi como moeda de troca. A dançarina Sheila Mello, ainda bem famosa, vinha à frente dos ritmistas.
Mais adiante, as alas aludiam à chegada do boi na América, e à sua utilização na lavoura da cana-de-açúcar.
Tido como responsável por dar início ao processo de criação do gado nelore no Brasil, o latifundiário Garcia de Sousa d'Ávila teve a Casa da Torre do Castelo de sua fazenda, na Praia do Forte, Bahia, representada na terceira alegoria.
As alas seguintes traziam as representações do boi Brasil afora: os Bois Garantido e Caprichoso, do festival folclórico de Parintins, o Bumba-meu-boi maranhense (na ala das baianas), os boleadores dos pampas gaúchos (montando e laçando o gado), e até a política do café paulista com o leite mineiro foi lembrada.
Um resumo dessas festas populares também vinha sobre o carro que representava a Fazenda Imperial de Santa Cruz, precursora do bairro de Santa Cruz, na zona oeste do Rio de Janeiro. Maior complexo agropastoril do Brasil durante o século XVIII, milhares de cabeças de gado eram mantidas no local, fundado por jesuítas, e ocupado pela Família Real, no início do século XIX.
A importância econômica do gado esteve presente no último setor, com referências aos embutidos, crinas e pelos, pois do gado tudo seu utiliza, passando por todo o mercado que envolve o estilo country e chegando até a genética, que revolucionou a pecuária, e vinha representada numa alegoria em forma de um grande laboratório, encerrando o desfile.
Altamente luxuoso, o Império conquistou 298,25 pontos, igualando-se ao Vai-Vai, na primeira colocação. O desempate, no quesito evolução, garantiu o bicampeonato à escola azul e branca.
Eleito com amplo apoio do setor agropecuário, Bolsonaro, que não gosta de ser chamado de “noivinha do Aristides”, está na iminência de conseguir para o Brasil uma série de restrições à exportação de carnes brasileiras, uma vez que o mundo não vê com bons olhos a devastação de nossa vegetação para o aumento das áreas de pastagem.
Nossa Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, por sua vez, chegou a declarar publicamente que (o boi) “é o bombeiro do pantanal, porque ele é quem come aquela massa do capim, seja o nativo ou plantado. É ele que come essa massa para não deixar como este ano nós tivemos. Com a seca, a água do subsolo também baixou os níveis. Essa massa virou um material altamente combustível”. Sim, é isso mesmo. O pantanal é o grande culpado por sua destruição. Se houvesse mais gado pastando e, portanto, menos pantanal, não teríamos que nos preocupar com os incêndios na região. O que me impressiona, não é o discurso. É que ele faz sentido pra muita gente.
Vale lembrar do embargo chinês, iniciado em 4 de setembro, dessa vez em virtude de alguns casos do chamado “mal da vaca louca”. O embargo caiu, também na semana passada, mas os olhos dos chineses estão bem abertos, com o perdão do trocadilho, até porque o desgoverno brasileiro não perde nenhuma oportunidade de esculachar nosso principal parceiro comercial.
E a pseudo-união Brasil-EUA, tão festejada pelos ingênuos torcedores da farândola bolsonarista, dá claras evidências de nunca haver existido, surpreendendo apenas os ingênuos, e os boçais. Em outubro, o Congresso norte-americano passou a se debruçar sobre um projeto de lei que pode barrar a importação de mercadorias que tenham causado desmatamento em seu ciclo produtivo, num claro aviso a Pindorama.
É, parece que “toda essa engrenagem já sente a ferrugem lhe comer”.
O Brasil ainda servirá de pasto por mais um ano a essa gente. O impeachment, criado para evitar que malucos ocupassem o Palácio do Planalto, não será utilizado contra aquele que, desde o primeiro dia, vem dando “check” nos dispositivos que prescrevem o que se espera que um presidente não faça.
Se a gente organizar direitinho, em um ano estaremos prendendo o gado de volta no curral, medindo a extensão da devastação, recolhendo a sujeira e replantando um pouco da alegria que precisaremos para nos reerguer.
Poderemos, enfim, cantar alguns outros versos daquele samba do Império em 2006:
“A vitória, então, surgiu”
“A alegria está no ar”
“Vem amor, vamos comemorar”
P.S. Hoje, 02 de dezembro, comemora-se o Dia do Samba. Então, deixo aqui minha homenagem a todos os sambistas, do Brasil e do mundo, que não deixam o samba morrer!
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.