Como o filósofo Friedrich Nietzsche já escrevia, a medicina nasceu com o teatro, em Epidauro, onde surge o centro médico, o teatro e a tragédia (vide os livros “O Nascimento da Tragédia” e “A Gaia Ciência”). Hospital e a arte, lado a lado. E os médicos convidavam os pacientes a ir ao teatro como parte da cura. Agora, mais do que nunca, em meio ao surto de fake News e noticiários sensacionalistas, precisamos da autonomia das artes como geradora de catarses... de despertares de consciência. E documentários como os lançamentos recentes “Narciso em Férias” na Globoplay e “O Dilema das Redes” na Netflix são algumas das produções que estão dialogando diretamente com estas questões no presente. Mas seria o suficiente?
Estaria a importância do conteúdo destes filmes atropelando a forma de se contar essas histórias? A questão é: se considerarmos o conteúdo como indispensável, deveríamos relegar o formato ao segundo plano? Se o cinema evoluiu a linguagem dos filmes por mais de século para contar uma história não apenas com as palavras enunciadas, narradas por suas próprias personagens, o que dizer de imagens compostas e montadas de forma a subestimar a inteligência do espectador? Sem falar em “facilitadores” que cogitam a necessidade de mastigar a informação até a última gota digerida, uma vez que talvez estejamos imersos numa realidade tão polarizada que seja difícil conceber a autonomia da reflexão afora de nossas próprias bolhas.
“Ninguém supõe a morena
Dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema
Mando um abraço pra ti
Pequenina como se eu fosse
O saudoso poeta
E fosses a Paraíba...”
Estes acima são versos cheios de representatividade e regionalismo cultural na canção “Terra” de Caetano Veloso, cantada em cena no novo documentário “Narciso em Férias” de Renato Terra e Ricardo Callil – Nosso único filme brasileiro este ano no Festival de Veneza, exibido no dia 06/09, e lançado na Globo Play no dia seguinte. O documentário é praticamente um monólogo confessional do próprio Caetano Veloso para a câmera sobre quando foi preso em dezembro de 1968, após a decretação do Ato Institucional nº 5 (para quem não se lembra, o AI-5 ampliou a perseguição político-ideológica a qualquer oposição na Ditadura Militar). Acompanhamos apenas Caetano falando sobriamente numa cadeira, de costas para um paredão de concreto quadriculado como um plano cartesiano, com pouquíssimas intervenções de perguntas ou de montagem com o extracampo fora de quadro.
Pelo contrário, ironicamente, os versos destacados da música acima são extremamente cinematográficos, pelo menos na concepção geral do que se configuraria “cinema”. A letra de “Terra” foi concebida e escrita por Caetano a partir da inspiração de quando viu as primeiras fotos do nosso planeta ainda no período encarcerado. Suas músicas daquele período já narravam com bastante plasticidade imaginativa todo o terror da perseguição política que sofreu por fazer a sua arte... Então, a força da verve de Caetano já se provaria suficiente para sustentar a história por si só. Versos de música chegam a ser mais visualmente deslumbrantes do que um roteiro de cinema, por vezes, para transpor quadros imaginados para a tela concreta... Bem como músicas podem ser uma boa contação de histórias de alguém com a maturidade das vivências passadas, como um “griot” (função de origem africana de quem ficava incumbido da transmissão oral da história de seu povo).
Como dito acima, o cenário singular escolhido para Caetano relatar suas memórias é uma grande parede de concreto, a qual poderia aludir ao confinamento de outrora... A locação de fato onde essa parede foi filmada, não por coincidência, se situa na Cidade das Artes, instalação gigantesca na Barra da Tijuca que significa muitas coisas contraditórias para quem vive no Rio de Janeiro: de resistência cultural a um investimento astronômico elitista que não foi bem conduzido. Se a arte e a cultura são tão importantes (e são!), por que costumam ser pivôs de manipulações políticas que em nada honram a nobreza do que representam? E talvez esta singela parede de concreto diga muito sobre a sobriedade do filme, sobre a escassez de dispositivos (com exceção da revista com as fotos da Terra e do relatório da prisão que Caetano folheia), ou mesmo sobre a falta de recursos financeiros e narrativos para sustentar a fala de Caetano durante a projeção.
Num projeto encomendado por sua esposa, a produtora Paula Lavigne, e inspirado num episódio do livro do próprio, “Verdade Tropical” (1997), o documentário foi filmado poucos dias antes das eleições de 2018, com duas câmeras livres que se ajustam a todo momento (de forma até incômoda) para não perder nada em tempo real. Com isso, faz a escolha temerária de dispensar uma câmera master para ancorar a imagem central, e descarta também quase todas as imagens de arquivo para materializar as falas do artista (mesmo havendo extensos registros que comprovam os fatos narrados para além das subjetividades em jogo).
A questão maior talvez seja justamente por estarmos vivendo uma febre de polarizações políticas em tudo o que se vive atualmente. Não que a arte não seja política, pois sempre foi. Como já dizia o grande professor Paulo Freire: “Não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é inclusiva ou excludente?” E estamos vivendo momentos muito excludentes no momento para não usar todas as ferramentas do cinema a oferecer reflexões inspiradoras, ainda mais porque a música de Caetano é muito maior do que este filme, e a obra audiovisual, neste caso, não alcançou a inspiração do próprio entrevistado, mesmo com todo o potencial que ele poderia representar.
A sensação final é de decepção, de perda de uma oportunidade de falar com um público ainda mais abrangente que rompesse todas as bolhas, mesmo que isso não signifique que o filme seja descartável – Ainda estamos falando de um dos maiores artistas de todos os tempos, denunciando analogias da época da Ditadura Militar com o que a arte e a sociedade estão vivenciando hoje.
Já numa outra corrente, oposta à economia de dispositivos para narrar a história, documentários pasteurizados da Netflix como “O Dilema das Redes” (“The Social Dilemma”, 2020) de Jeff Orlowski parecem picadeiros estereotipados almejando a audiência da sociedade do espetáculo (para usar a expressão do pensador Guy Debord).
Diferente de “Narciso em Férias”, nem a importância do conteúdo de “O Dilema das Redes” consegue salvar a forma como sua narrativa chega a atirar no próprio pé do que traria de legítimo: a construção viciante das redes sociais como forma de vigilância e controle na manobra política de massas. Sua “mensagem” chega a ficar dúbia e maniqueísta. Porém, os verdadeiros males que deveriam ser apontados ficam na superfície, e alguns dos culpados são inocentados por um suposto arrependimento póstumo (como muito bem descrito nesse texto da colega Mariana Serafini aqui). Não exaurido o tema, deveríamos acrescentar ainda a isto um fator bastante responsável pela relativização até mesmo das falas urgentes do filme, que seria a linguagem risível escolhida para retratar o tema.
Para além da estrutura simplória com o dispositivo de “talking heads” (cabeças falantes), onde as pessoas entrevistadas falam diretamente para a câmera num formato mais jornalístico, o filme ainda insere em paralelo a dramatização novelesca dos fatos narrados numa família ficcional que vai sofrer todas as consequências possíveis e imagináveis. Desde uma briga na mesa de jantar, com todos enfurnados no celular, até uma aposta para ver quem consegue fazer uma desintoxicação das redes, que levará a uma crise de abstinência e suscetibilidade maior ainda às propagandas ideológicas e vinculantes de bolhas políticas... – Como se as pessoas não tivessem predisposição prévia antes de serem lobotomizadas ou conduzidas como gado por determinado caminho.
O filme retira completamente a possibilidade de livre arbítrio ou mesmo da culpa estruturante da própria sociedade que se utiliza das redes sociais, como se estas fossem uma inteligência artificial que se auto sustenta apenas para vender o ser humano como a um produto sem fronteiras. E até os depoimentos arrependidos de várias pessoas que trabalharam para estas redes (como Google, Facebook, Instagram etc) se torna unidimensional, diferente de outros filmes que já abordaram essa temática direta ou indiretamente, como “Citizenfour” de Laura Poitras (ganhador do Oscar de documentário 2015, sobre Edward Snowden) e “Privacidade Hackeada” de Karim Amer e Jehane Noujaim (de 2019, sobre os crimes cometidos pela Cambridge Analytica). Ambos utilizaram do princípio do contraditório e do olhar opositivo para criar tensões dentro das próprias falas trazidas. Mesmo usando do recurso “talking heads”, inserem várias réplicas e tréplicas bem mais complexas, como os depoimentos nos julgamentos em tribunal que contradiziam várias das coisas ditas para a câmera, ou mesmo usando de ironia e senso de perigo na montagem e ritmo de cenas. Até “Narciso em Férias” não fica preso ao caráter jornalístico potencial de mera entrevista, porque Caetano tem muitas matizes emocionais para dar textura e relevos a seu relato, sem falar que canta uma ou duas músicas (o que é sempre bom)...
Decerto, subestimar a inteligência semiótica do cinema e esperar por pouco repertório do espectador é se entregar ao risco de poder causar o efeito reverso. Sim, é bem verdade que alguns espectadores começarem a suspeitar de tudo que a arte tem a oferecer neste período persecutório à cultura, e começaram a rejeitar códigos do cinema mais complexos como se estivessem sendo ludibriados... Porém, de forma inversamente proporcional, utilizar-se apenas de códigos simplistas ou até ingênuos na tentativa de didatismo forçado e de reeducação doutrinada pode vir a ser tão perigoso quanto, a estimular um rebanho de espectadores que deixou de pensar por si próprio e virou gado de manobra.
Aí sim, vale muito bem dizer que, na frente de nossos documentários brasileiros na vanguarda do mundo, mesmo que “Narciso em Férias” empalideça um pouco um panteão contemporâneo notável, talvez mais certo seria se a Netflix viesse contratar mais profissionais no nosso mercado. Que eles nos deem a chance de produzir com mais recursos que o governo está privando injustamente, e, quem sabe, poderemos sair do perigo da pasteurização única atual.
*Filippo Pitanga é jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum