Esta semana, duas declarações polêmicas de representantes do atual governo contra o cinema brasileiro e internacional escancararam uma agenda ideológica excludente e contrária à emancipação democrática que a arte pode e deve gerar. Na primeira declaração, a Ministra Damares Alves já havia decretado guerra à Netflix, pedindo a censura de “Lindinhas” (“Cuties”), filme da diretora franco-senegalesa Maïmouna Doucouré, premiada em Sundance 2020, alegando sexualização precoce de crianças. Isso resultou em mais um incidente internacional do governo atual, onde o Ministério da Cultura francês precisou se pronunciar em defesa da cineasta, uma vez que Damares parece não ter de fato assistido ao filme para entender que ele é uma crítica ao que suas alegações retiraram de contexto.
Na segunda malfadada declaração da mesma semana, o Presidente da Petrobras Roberto Castello Branco afirmou que a instituição não vai mais financiar “filme de qualidade mais do que sofrível”. Como exemplos, ele maculou até a memória do saudoso patrimônio cultural brasileiro Zé do Caixão, que dublou, em vida, um dos filmes criticados: a animação “A Lasanha Assassina” (2002). E ainda chegou a atacar filme que nem sequer foi financiado por sua entidade, como “Bixa Travesty” (2018) de Kiko Goifman e Claudia Priscilla, documentário sobre a artista LGBT Linn da Quebrada e sua parceira de trabalho, Jup do Bairro. O alvo da declaração difamatória, e possivelmente transfóbica, na verdade, parece ter sido uma questão de intolerância ao próprio título, como explicam seus diretores em entrevista exclusiva à Revista Fórum:
Claudia Priscilla: Eu me sinto bastante insultada com a declaração do Presidente da Petrobras, e eu também considero bastante inapropriada essa citação, porque a Petrobras não é patrocinadora do “Bixa Travesty”. Não tem dinheiro da Petrobras na produção do filme. Então, eu acho que tem também uma apropriação aí, uma carona no “Bixa”, que pelo título já deve incomodar bastante este senhor... O nome “Bixa Travesty” já deve ser um lugar de incômodo, mas além de um insulto, eu vejo como uma apropriação.
Kiko Goifman: A gente se sente ofendido, um insulto é uma coisa absurda. E tem um lado da nossa resposta que será uma resposta judicial. Nós vamos entrar com um processo. Existe essa figura jurídica na qual você falar uma coisa dessas, leviana e dessa forma, isso justifica sim uma ação. É esta ação que estamos neste momento conversando com advogados, vendo o tamanho da ação. Porque envolve uma série de coisas. Por exemplo, é claro, você está difamando, insultando um filme, toda a equipe que participou desse filme... Você está insultando uma personagem real, no caso, que é de um documentário. Então, como a Claudia falou, existe uma questão aí muito violenta, quando você coloca nesse lugar público, de grande repercussão, que o Presidente da Petrobras pode ter, e ele fala mal de um filme chamado “Bixa Travesty”. Eu tenho muitas dúvidas se ele assistiu. Ou mesmo, se ele assistiu, e talvez não tenha gostado, talvez faça parte de certo machismo? Talvez. Ou de um certo lugar que é muito questionado neste filme... Então, é mais uma dessas estratégias de marketing desse governo de jogar para todo lado: pegar o nome de um filme, jogar pra todo lado, sendo que este filme envolve pessoas, que são pessoas que saem na rua, e são pessoas contra as quais estamos percebendo cada vez mais crimes de transfobia e violência na rua. É um assunto muito, muito sério.
O filme foi aclamado internacionalmente e multipremiado no mundo todo*, demonstrando que estamos numa vanguarda artística, como com a questão da representatividade, já que Linn co-assina o roteiro e hoje apresenta com Jup um programa no Canal Brasil que surgiu a partir do filme, chamado “TransMissão”. Uma conquista plural do audiovisual e de outros olhares narrativos, que gera empregos e conscientização de causas como contra a transfobia... Vocês vêem essas declarações recentes como um ataque não só ao filme de vocês, mas como a um conceito de produção conquistado durante as administrações anteriores?
Claudia: Eu acho que esse assunto, que aborda sexualidade e gênero, é um assunto tabu desse atual governo. Não é a primeira vez que a gente sofre esse tipo de ataque, com outros projetos, e com “Bixa Travesty” também. A gente pode ver isso na exposição do Queer Museu. A gente pode ver isso no teatro... Isso está acontecendo em várias áreas onde a arte se coloca diante desse tema. Eu acho muito preocupante, porque esse tipo de citação, esse tipo de conduta, que é do presidente da Petrobras, é a cara desse governo, e eles legitimam uma violência contra esses corpos, que já são corpos vulneráveis. Que já são corpos alvos de violência tanto simbólica, quanto física, diariamente. Então, acho que um governo legitimar esse tipo de violência, que é crime, é estarmos vivendo tempos completamente confusos. E existe uma complexidade nisso tudo. Me parece que esse governo afirma um desejo de morte, um desejo de apagamento de coisas que eles não concordam. De corpos que eles não querem que sejam visíveis dentro da nossa sociedade.
Kiko: E tem uma coisa que, logo nas primeiras lives, o Bolsonaro falou publicamente mal de um projeto da Cláudia, que é o Religare Queer. Era um projeto que a gente tinha uma pontuação lá em cima pra ganhar o edital, e esse projeto foi derrubado. Um projeto com profissionais como Laerte Coutinho etc, que discutia a questão da religiosidade e da questão LGBT. A gente já sabia que a gente vive momentos muito difíceis. Só que a gente não esperava que essa perseguição que vem logo do início se materializasse em falas completamente absurdas – E que se materializarão em um processo do tamanho que merece.
Desde que o governo assumiu essa ideologia contrária à liberdade democrática de acesso e investimento prevista na Constituição Federal (como no art. 215 § 1 da CRFB), como está sendo obter investimento para projetos novos?
Kiko: Com nossos projetos, a gente sente que sempre esteve um pouquinho à margem. Não são exatamente os projetos mais comerciais ou projetos que num primeiro olhar seriam comerciais... Como diz Jean-Claude Bernardet, nossos filmes são comercializáveis. Se olhar para os nossos filmes, eles podem sim ter uma potência de público, como aconteceu com o próprio “Bixa Travesty”. Porém, a gente sabe que está meio à margem. Até quando a gente vê o “Bixa Travesty”, a quantidade de prêmio de público que o filme ganhou, você começa a pensar: “uau! Tem gente interessada nisso”. Já era um processo difícil. Historicamente, todo mundo sabe que é difícil o “como trabalhar com o público”. Uma frase do Coutinho que fala, inclusive, que se você quiser ser rico e tal, famoso, não seja documentarista. Porém, a gente estava trabalhando num momento de uma certa potência, em que o documentário brasileiro, em geral, é muito bem visto fora do Brasil. Existem retrospectivas de filmes brasileiros documentais nos Festivais mais importantes. E o que acontece pra gente é que neste momento a gente vivencia realmente um tiro que a gente toma.
Claudia: Pra mim é evidente este momento de uma guerra cultural, onde o que rege agora os valores são morais, e não mais políticos e econômicos. Então, é muito difícil negociar e viver esse momento onde a grande questão é moral. E a moral a gente sabe de onde vem, e como ela é pregada, e o que vem com ela. É um momento extremamente tenso, infelizmente, pra cultura em geral.
Kiko: A gente tem alguns projetos que envolvem coproduções com países como a Alemanha, Finlândia... Só que, se a gente não tiver uma verba do nosso país, o outro país interessado não entra. A gente se sente mobilizado e não pode concretizar propostas em cima da mesa de dinheiro, como da Finlândia, por exemplo, porque eles precisam que a gente tenha o pontapé inicial. E seria dinheiro da Finlândia a ser utilizado pra produzir aqui no Brasil. Aí a gente entra na discussão que é a mais terrível: a gente paga nossos impostos. O “Bicha Travesty” devolverá cinquenta mil reais ao Fundo Setorial por lucratividade. Do lucro que a gente teve com o filme, 80% a gente devolve ao Fundo Setorial. É uma atividade que retroalimenta e tem todo tipo de potência e que isso não é visto. A gente sabe que a nossa dificuldade de falar sobre isso é também a gente não poder utilizar uma série de impropérios diante de uma série de coisas absurdas, senão a gente vai ser processado. Então, a gente tem que sorrir quando vê o que temos como Secretário do Audiovisual... Parece que a pessoa que cuida do departamento de diversidade é um militar especializado em ataques aéreos, agora isso é a “diversidade”. Porque nosso desejo seria falar e falar..., porque eles se sentem neste direito de falar. Eles podem pegar as metralhadoras e atirar.
Claudia: Essa seleção de informação que saiu no Globo, que bom que comenta sobre a trajetória do nosso filme, é um dado importante naquela matéria. Mas essa seleção de informação, e onde ela é levada, onde é difundida, é tão perverso. E eu acho que esse é um lugar tão perverso, que infelizmente ainda temos muito a aprender. E pensando em geral, isso a gente pode aplicar para a mídia em geral hoje em dia, essa seletividade de onde vai e para quem vai.
Kiko: Assim que o Globo soltou esta matéria, saiu outra no site Antagonista, que a gente sabe bem que é um site de direita e tal, e que vai só até a parte da acusação aos filmes, e tira a parte em que o nosso filme foi premiado etc... O que estamos aqui discutindo uma questão que é triste, é sofrível, um insulto público, é visto como uma coisa legal, que tem um monte de gente comemorando que “acabou a mamata” do dinheiro da Petrobras (que a gente nunca recebeu), agora que o Presidente da Petrobras pode soltar essas loucuras...
Temos o documentário da GloboPlay “Narciso em Férias”, sobre a prisão do Caetano Veloso na época da Ditadura, onde movimentos como o tropicalismo e o Cinema Novo fizeram frente à opressão da época... E hoje estamos com outras narrativas plurais da arte, periféricas, também da música, como Linn, e uma representatividade conectada. Hoje estamos falando de uma nova opressão? Eles com armas e nós tentando nos defender com arte? O quanto o cinema anda sendo uma ferramenta de democracia?
Claudia: Eu já usei muito a palavra censura antes, mas muitas pessoas já conversaram comigo sobre o uso desta palavra, porque a gente tem uma diferença muito grande de hoje pra época da Ditadura. Existia um órgão Censor e a função dele era muito clara. Hoje em dia, a gente não tem um lugar, essas coisas podem vir de qualquer lugar, de qualquer boca, de qualquer pessoa. Então, essa coisa não ter um lugar específico também deixa tudo muito confuso, até no sentido de nomeação, de como podemos chamar isso. O que é censura? A censura não está institucionalizada neste momento, só que está acontecendo. Eu acho até que existe um exercício de encontro de novas palavras para este novo tempo.
Kiko: A censura burocrática que está paralisando a produção do cinema, e de arte no Brasil, é uma forma inteligente de censura. Se você for pegar o estudo sobre burocracia de Max Weber, por exemplo, é um exercício de poder em que você não precisa censurar de fato, você simplesmente paralisa todas as estruturas que estão se movimentando. E aí sim as pessoas não trabalham, as pessoas não fazem. A gente está falando de arte e cultura, mas, na verdade, a gente pode pensar num desmantelamento maior, que envolve educação, o meio ambiente, a saúde (não temos um Ministro da Saúde). Nesse calar, aconteceu e ficou... É uma estrutura de imobilidade cultural no sentido maior da palavra cultura, não só da arte, das relações sociais e humanas, na qual nada disso tem nenhum valor. É super “importante” agora diminuir a pena para quem comete acidentes de trânsito, e isso é uma questão “essencial” para este governo agora. E quando a gente vê isso, entendemos o que está por trás, quais são os alicerces. Vamos continuar com todos os dilemas de um país... E não tem mais como não dizer isso: a gente está vivendo censura sim. Não só com os nossos filmes, em geral. Eu tenho medo de algumas coisas faladas hoje em dia serem processadas, mas isso não há medo não: a gente está vivendo censura.
Claudia: Mas acho também que onde há poder, há resistência. Então, existe uma necessidade de a gente fazer uma aliança de corpos, pra gente poder ser uma resistência de fato ante tudo isso que está acontecendo.
O obstáculo é temporário e a arte é eterna: Há uma belíssima cena do filme onde Linn subverte a solidão isolada no hospital, durante seu tratamento de câncer, onde ela se libertava através do audiovisual, se filmando com o próprio celular e reocupando o imaginário sobre o próprio corpo – algo que ressignifica e se amplia na identificação de tantas pessoas isoladas agora em hospitais com a pandemia mundial. À luz do ataque recente, mas que trouxe o filme de volta às mídias, como é poder revisitá-lo sob nova perspectiva da atualidade e o bem que o filme pode trazer?
Kiko: A gente vai tentar muito reverter isso, no sentido de que mais pessoas vejam o filme. Realmente é um filme de amor, de relação de afeto muito grande. A gente mantém uma relação de afeto, o filme virou um programa do Canal Brasil, e estamos tentando reverter isso (o lado negativo). Tem um lado que é do jurídico, e outro onde vamos entrar com publicidade e o filme “com a qualidade mais que sofrível” (palavras do Presidente da Petrobras) talvez lhe desperte interesse em assistir.
Claudia: O “Bixa Travesty” é um filme de alianças criativas, afetivas, e eu acredito que essa é a sua força. Tem uma coisa que eu pensei muito durante o lançamento do filme que é: lá atrás a gente fazia um filme com um tema LGBT e automaticamente era pensado para um público LGBT, e isso mudou há muito tempo. Eu acho que quando a gente traz uma mulher trans, mulher negra, uma mulher artista que usa o próprio corpo, como ferramenta e espaço de arte, a gente está discutindo questões sensíveis a toda uma sociedade, assuntos extremamente importantes destes tempos. Então, mesmo que venha de uma forma péssima para a mídia, pode aguçar mais gente a acessarem essa história, essa vida maravilhosa, essa mulher maravilhosa que é a Linn da Quebrada.
Kiko: Eu estou neste momento conversando com o distribuidor para ver se podemos voltar para uma coisa de drive-in, conversando com o Canal Brasil... Já estamos fazendo ações concretas. Pegar essa bala que nos atiram e jogar mais forte neles. É muito amor, e um pouquinho de advogado também.
Se quiser assistir a esta entrevista em vídeo, clique aqui.
O documentário está disponível no Now e será exibido no Canal Brasil na próxima terça-feira, à meia-noite. E confira logo abaixo a lista de Festivais e Prêmios do filme:
Entrou em cartaz na Argentina, França e Brasil.
Melhor Documentário - Teddy Awards - Festival de Berlim / Alemanha (veja aclamação filmada ao vivo aqui e aqui e aqui)
Melhor Direção - Festival de Cartagena / Colômbia
Prêmio Gio Stajano - Lovers Film Festival Torino / Italia
Premio de Inovação - Inside Out Festival Toronto / Canada
Melhor Filme e Premio da Audiência - Mostra La Ploma Valencia / Espanha
Premio da Audiência - Mostra Fire Barcelona / Espanha
Menção Especial do Juri - DocumentaMadrid / Espanha
Menção Especial do Juri - MIX Milano / Italy
Melhor Documentário - GAZE LGBT IFF / Ireland
Prêmio da Audência - Melhor Doc - Festival de Brasília
Melhor Trilha Sonora - Festival de Brasília
Melhor Momento do Festival de Brasília 2018 - Prêmio Saruê (Jornal Correio Braziliense)
Melhor Documentário - Biarritz LatAm FF
Melhor Documentário - Luststreifen Film Festival - Basel
Menção Especial - NewFest LGBTQ FF - USA
Melhor Documentário (Young Film Critics) - Gender Bender Festival - Itália
Menção Jurado - FrontDoc - Itália
Melhor Documentário (Premio Audiência) - Mix Brasil
Melhor Documentário - Cheries-Cheries Paris LGBT FF
Melhor Documentário - Merlinka FF (Sérvia)