À luz da condenação do produtor hollywoodiano Harvey Weinstein e da propagação do movimento #MeToo, sobre casos de assédio e relações abusivas, mais e mais a conscientização mundial vem crescendo... mesmo que ainda de forma desproporcional perante o ritmo com que esses casos aconteçam. Esta semana veio a público uma matéria do The Intercept Brasil com extensa pesquisa acerca de mais um caso grave de assédios e abuso de poder muito sério no meio do cinema brasileiro. Não é a primeira vez e nem será a última, decerto. Porém, parte desta perpetuação negativa se dá justamente porque possuímos uma condescendência estrutural com tudo o que se interliga a estas questões, e, com isso, violências desse tipo passam a ser naturalizadas.
Muitas pessoas se calam ou olham para o outro lado por sentirem medo de retaliações. Afinal, parte do problema é a relação hierárquica de autoridade que facilita o lugar do abuso, bem como a possibilidade de encobri-lo. E, diante de uma sociedade ainda fincada de forma pesada em raízes patriarcais, este silêncio é ainda mais cúmplice entre os homens... Muitos temem serem os próximos para quem o dedo poderia ser apontado (o que já demonstra por si próprio um sintoma). Outros não querem ser excluídos de seus privilégios. E talvez por essas e outras que vemos pouquíssimos homens se pronunciando aberta e publicamente sobre o assunto.
Porém, deveríamos todos tomar o exemplo na coragem demonstrada pelas vítimas ao se pronunciar. São elas, em geral, que acabam sofrendo múltiplas vezes: primeiro por passarem pelo trauma inicial, depois por ter de revivê-lo e, por fim, por enfrentarem a descrença e falta de apoio da sociedade. Falta de apoio que, às vezes, chega a se voltar contra elas. A voz que se pronuncia costuma ser julgada como “inconveniente”... Afinal, está derrubando as cortinas da hipocrisia de uma suposta cordialidade desse teatro de costumes. Ou pior, costumam ser processadas por difamação em caminhos que não só levam à impunidade de quem cometeu os atos inicialmente acusados, como à culpabilização e até criminalização da vítima.
Vale lembrar que muita gente ainda relativiza a própria palavra “assédio” ou a expressão “relação abusiva”. Começa com uma suposta “troca” que na verdade acontece numa via unilateral ou desproporcional, pois o bônus prometido jamais compensa o ônus exigido... Depois, a pressão psicológica de que a pessoa deve aceitar o ônus para não sofrer represálias ou não ser excluída de um meio profissional (o que geralmente é uma imposição de força e poder). Ou até mesmo se estende a uma suposta relação consensual, mas que, por sob a camada de reciprocidade, oculta uma opressão e tortura a ponto de prejudicar a própria integridade psicológica e até física. Lembremos que o próprio artigo 213 do Código Penal ampliou o conceito de estupro para:
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.”
Dito isso, ainda é senso comum o pensamento absurdo de que, se o sexo começou de forma consensual, a pessoa não teria mais o direito de dizer não a partir do primeiro consentimento (neste sentido, vale assistir ao curta-metragem “O Mais Barulhento Silêncio” de Marccela Moreno na grade do Canal Brasil). E estas questões se prolongam para outras relações de poder, sejam sociais, de trabalho ou mesmo pessoais. A tortura psicológica geralmente faz parte destas práticas, e levam a pessoa a tentar quebrar o psicológico da outra, muitas vezes como parte de obter prazer, especialmente em relações de hierarquia, como as de trabalho ou ensino. Hoje mesmo, em aula online, na faculdade de cinema onde leciono, o assunto da matéria do The Intercept Brasil foi abordado por uma turma predominantemente composta por mulheres (um crescimento estatístico cada vez mais frequente). E elas perguntaram: quais são as formas possíveis de se proteger neste meio?
O que dizer para elas? E também para os homens em classe? Será que os professores em geral realmente acham que, simplesmente repassando a matéria devida, estarão preparando essas pessoas para o mercado de trabalho e a sociedade com todos os revezes inerentes ao sistema? Quando se tem uma função de ensino, a pessoa está numa situação de responsabilidade ainda maior. Não apenas para com sua turma, mas para com seus colegas profissionais também. Se você acreditar que possa ter visto uma relação de abuso e fizer vista grossa, achando não ser nada demais, ou que tudo possa se resolver naturalmente, pode estar compactuando com a perpetuação de um crime, o que lhe torna cúmplice.
É impressionante a conivência masculina quando se trata de assédio e abuso cometido por "amigos"... Amizade não é encobrir crime. Encobrir crime é crime! Amizade é não deixar o mal se propagar. E caso isso pareça uma situação desconfortável perante o corpo docente, imagine a vulnerabilidade de estudantes que já se encontram em situação de hipossuficiência perante a hierarquia de ensino... Decerto, a gravidade é muito maior para o corpo discente do que para o docente.
O governo atual gostaria de levar a crer que educação sexual nas escolas seria algo negativo... Porém, se não debatemos em relação a estes assuntos nem na idade mais importante, que é justamente a de formação, para ajudar a prevenir tantos e tantos casos de abuso e pedofilia até mesmo dentro da família, o que dizer dos adultos que formamos? Há de exemplo o recente caso da menina de 10 anos que engravidou pela violência cometida pelo próprio tio (neste sentido, vale assistir ao filme “The Tale” de Jennifer Fox na HBO e ler sobre ele aqui). Isto porque educação sexual serve para os dois lados, não apenas para se defender, mas como para instruir e prevenir que não se cometam mais esses atos.
Se jovens recebessem instruções efetivas desde cedo, talvez mudássemos a estrutura como um todo, inclusive coibindo possíveis abusos em potencial pela raiz quando esses jovens crescessem. Isso sem falar que palestras sobre o assunto deveriam ser dadas em universidades e ambientes de trabalho também, pois o aprendizado precisa ser constante. A única forma de interromper o ciclo é começando de algum lugar... que tal olhar para o lado e se juntar ao próximo para começar uma rede de apoio?
Para completar, vale dicas recentes para esclarecer mais sobre o assunto, como as séries “I May Destroy You” de Michaela Coel (na HBO) e “The Morning Show” com Jennifer Aniston e Reese Witherspoon (na Apple TV), temas de coluna anterior aqui, e o filme “O Escândalo” com Nicole Kidman, Charlize Theron e Margot Robbie (na Amazon Prime Video). E vale lembrar alguns dos casos e matérias investigativas, pois conhecimento e informação também é prevenção:
Carta Aberta API (Associação de Produtores Independentes): “Caso Gustavo Beck e as Estruturas de Poder do Cinema” (leia aqui)
Reverberação do Caso Weinstein no Brasil (leia aqui)
Caso de assédio na TV Globo (leia aqui e aqui)
Caso da gestação por abuso da menina de 10 anos (leia aqui)
Caso de assédio na Escola de Cinema Darcy Ribeiro (leia aqui)
“Indústria do Cinema busca medidas práticas para lutar contra assédio” (leia aqui)
“Pinto não é Fotômetro: Um relato sobre mulheres diretoras de fotografia no Brasil” (leia aqui)
“Por trás das câmeras: A luta das mulheres no Cinema Brasileiro” (leia aqui)