Semana passada recebemos algumas notícias difíceis para o cinema e a cultura em geral. Em primeiro lugar, o encerramento das atividades do Cine Joia, um espaço de cinema e curadoria de resistência que perdurou por décadas, pertinho da praia de Copacabana, a trazer filmes mais autorais, independentes, com clássicos e novos cults de filmografias periféricas e estrangeiras para o público carioca. E ele não foi o único, outro que anunciou o fechamento de suas portas agora também foi o elegante e histórico salão retrô do Cine Roxy, no mesmo bairro, que era outrora um grande polo de cinemas de rua. O Roxy, por sua vez, faz parte da Rede Kinoplex do Grupo Severiano Ribeiro, que divulgou em suas redes que a paralisação será apenas temporária e que esperam poder retornar em breve... Sem falar que o famoso e muito aguardado Festival do Rio acaba de ser adiado para 2021 e também antecipa que adotará formato híbrido, entre o online e o presencial.
Eis que estamos vivendo um momento paradigmático de um dilema social. As salas de cinema neste momento paradoxal estão passando por alguns dos maiores desafios de sua história. Apesar de o poder público da maioria das regiões do Brasil ainda não terem instituído um novo lockdown, diante da segunda onda da Covid-19, e de que as salas de cinema estão autorizadas a continuar abertas, segundo os atuais protocolos de segurança, muita gente ainda não está se sentindo 100% à vontade para regressar presencialmente à boa e velha diversão no escurinho aconchegante, diante da tela grande. Porém, ao mesmo tempo, o circuito está passando por uma extrema recessão e periga não sobreviver a esta nova falência. Muito falamos outrora nesta coluna sobre formatos híbridos e reinvenção dos modos de fazer e ver as obras realizadas pela sétima arte, mas o quanto devemos também recriar novas formas de proteger as salas de cinema que, por si só, também são patrimônios histórico-culturais?
Diante destes fatores, e inspirados pela Carta aos líderes políticos norte-americanos assinada por mais de 70 diretores e produtores, incluindo Martin Scorsese, Clint Eastwood e James Cameron, além de proprietários de salas de cinema, clamando que o poder público ajude a salvar o futuro da indústria (leia mais aqui e aqui), convidamos duas experientes representantes do mercado brasileiro da sétima arte para dialogar um pouco sobre qual a realidade atual e suas expectativas para o futuro. Ainda mais agora que o novo secretário de Cultura do Rio de Janeiro foi apontado pelo prefeito eleito Eduardo Paes, que será o cineasta e produtor Marcus Vinícius Faustini (de filmes como “Chão de Estrelas” de 2012 e “Vende-se esta Moto” de 2017), e que já deve se inteirar de alguns dos desafios que deverão ser enfrentados de agora em diante...
Começando pela cineasta e produtora Margarita Hernandez, diretora de filmes como “Che, Memórias de um ano secreto”, de 2018, e coordenadora geral do Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, que comemora sua 30º edição de aniversário com muita resistência e afetos, em meio a este período pandêmico, e advindo de plena Primavera do Cinema Cearense com recorde de longas-metragens realizados na região desde o ano passado (confira mais sobre isso aqui). O Festival ocorre de 05 a 11 de dezembro (confira programação completa aqui) e homenageia dois dos maiores nomes nas nossas artes cênicas, Gloria Pires e Lázaro Ramos.
Revista Fórum: O formato do festival este ano será híbrido, com sessões virtuais e presenciais, seguindo todos os protocolos de segurança. Poderia explicar um pouco mais sobre esta novidade?
Margarita Hernandez: Sobre o formato, nós temos todo o festival Online. Ele está sendo exibido em 3 canais: no Canal Brasil (NET), no streaming através dos canais Globo (plataforma Globo Play), tanto os curtas quanto os longas, e a Mostra Olhar do Ceará está no YouTube do festival (clique aqui), como também na TV Ceará (TV do Estado), onde também serão exibidos os filmes da Mostra Social (para crianças, idosos e foco acessibilidade). Além de que os longas-metragens da Mostra Olhar do Ceará e da Mostra Competitiva Ibero-americana possuem também uma pequena Mostra presencial no Cineteatro São Luiz. Aliás, começamos ontem e está realmente muito bem controlado, o cinema está trabalhando super bem com 20% da capacidade (a fim de manter o protocolo de distanciamento social), então está sendo bem cuidadosa esta parte de cinema (que pode ser vista nos vídeos de divulgação, afinal, é uma sala histórica e monumental, como quase não existem mais hoje em dia, e que precisam resistir e subsistir, como patrimônio histórico cultural, mesmo diante da crise). Era necessária esta parte presencial. Evidente que programamos há cinco meses atrás, quando a situação estava bem melhor, mas é importante marcar esta presença física também, pelo menos com máscara e olho no olho, para lembrar que os festivais não podem ser suplantados de forma absoluta pelo online, como muitas pessoas pensam.
Revista Fórum: Mas você acha que o novo formato veio para ficar?
Margarita Hernandez: Sim, as plataformas virtuais levaram os festivais para a casa das pessoas, mas um festival é mais do que isso, é um lugar de encontros, de conversas, de promover ideias, de inventar. Um lugar também de reivindicar nossos espaços, de discutir políticas públicas também e isso a gente não pode abrir mão. Portanto, este pequeno encontro presencial, tomando todos os devidos cuidados, é um sinal para fortalecer isso, para marcar esta coisa linda que é um festival. A gente queria fazer uma festona nestes 30 anos, com beijos e abraços ao cinema, com muita música e alegria, mas acabamos fazendo um baile de máscaras, todo mundo mascarado, cada um no seu canto, mas vendo filmes na telona como eles merecem. Porque estes filmes que estocaram durante a pandemia perderam a tela grande, e isso é triste, porque os filmes com dois anos já não são mais aceitos na maioria dos festivais, pois “passam da data”, e poderiam se perder... E estamos com títulos que realmente mereciam uma projeção à altura. E, mesmo que para poucas pessoas, é uma emoção também para a equipe do filme se ver lá na tela e também trabalhar algumas qualidades do filme que só funcionam no escuro da tela grande, no 5.1. Então, pelo menos a gente resgatou esse pedacinho para que a coisa não morra.
Revista Fórum: Como é chegar à edição de aniversário do 30º Cine Ceará diante de uma história ímpar no Brasil, de união do audiovisual ibero-americano para além de quaisquer fronteiras, e logo quando o mundo está mais interligado do que nunca pelas possibilidades online?
Margarita Hernandez: São 30 anos de Festival, dos quais Wolney Oliveira e eu estamos há 28 anos à frente disto (confira entrevista exclusiva com Wolney aqui). E essa tem sido uma história de aprendizados, abrindo fronteiras. Éramos um Festival de vídeo de Fortaleza, que foi virando um Festival nacional, depois fazendo a Mostra Internacional, até depois se firmar como um festival ibero-americano. Então, nós temos crescido aos poucos. E outra coisa que foi muito importante para o crescimento do festival foi sempre ter tido um pé na formação, linkado à Universidade do Ceará e oferecendo muitos cursos. A questão sobretudo da formação tem sido uma coisa fundamental, porque como Wolney falou nas palavras de abertura, quando começou o festival só havia para estudar em Fortaleza a Casa Amarela, que era um curso da Universidade, e o Festival ajudou muito nestes 30 anos ao fomento de núcleos de formação, que hoje além de contar com três universidades, ainda tem mais dois cursos de cinema de nível técnico.
Revista Fórum: E você vê estas facetas serem integradas no cenário de cinema geral?
Margarita Hernandez: As pessoas quando têm um lugar pra mostrar o filme, fazem os seus filmes, sobretudo curtas, sabendo que possuem um espaço pra mostrar. De repente não entra na seleção final da competição nacional, porém existem várias mostras com vários perfis justamente para abarcar todos os tipos de filme, como a Mostra Olhar do Ceará. Esse espaço que o festival sempre tem dado, para o cinema local, ajudou muito a fomentar toda esta geração que se incorporou aí, às vezes fazendo coisa até de forma caseira, de guerrilha, e que aos poucos foi crescendo muito até entrar nos últimos 5 anos, trabalhando com o mercado propriamente. Lembrando que o Cine Ceará pariu 2 eventos, algo que quase nunca se fala, que saíram do festival, que é o Anima Ceará, Festival de animação, e o MAN – Mercado Audiovisual do Nordeste. Isso também é uma conquista desses 30 anos. Desde a abrangência na atuação de ter este gancho ibero-americano, como também colaborar com a formação do cinema do Ceará. O que mais nos orgulha.
Revista Fórum: O Festival também vem sendo um baluarte na defesa das políticas públicas voltadas para a cultura e o cinema regional no Ceará. Como você vê o impacto da luta contínua e especialmente desta edição híbrida de resistência para o futuro?
Margarita Hernandez: A resistência para o futuro é algo que toda a classe cinematográfica vive hoje um momento de expectativa, dentro de uma paralisação que não é apenas por conta da pandemia, mas também uma paralisação do setor que já vai completar dois anos. Então, isso se refletiu um pouco já na produção de longas, você vê tipo que tivemos um pouco mais de filmes estrangeiros na seleção desta vez, enquanto que nos brasileiros já começamos a sentir esta paralisação da Ancine. Tudo isto, penso que, pro próximo ano é que iremos ver o tamanho do buraco pro cinema. Curtas podem até ser um pouco mais fácil de fazer ainda, mas para viabilizar um longa-metragem é bem mais difícil, ainda mais sem nada, sem Ancine, sem FSA (Fundo Setorial do Audiovisual). A Ancine não está aprovando projetos, então não temos leis de incentivo, e olha que não estamos falando nem de FSA e sim de incentivos, pois se você não tem seu projeto aprovado, você não pode nem ir atrás de iniciativa privada nem nada. Então, a situação eu diria que é grave, que abalou e ainda vai abalar no próximo ano a quantidade de filmes e a produção vai decair, vai despencar.
Revista Fórum: E o papel do Cine Ceará, como fica?
Margarita Hernandez: O festival também é esse momento de estar junto, de se organizar e de pensar nessas saídas. Até porque aqui no Ceará anda se contando com uma boa vontade política, e tem um edital agora da Lei Aldir Blanc, que ainda está pra sair, mas é ainda tudo muito pálido e o cinema ainda está de pires na mão. Os eventos ainda têm outros tipos de fórmulas para se manter, mas a produção cinematográfica que é aquilo que alimenta o festival, pelo menos a brasileira, está fadada, pelo menos se não desaparecer inteira, a diminuir muitíssimo. E tudo isso é muito triste, é triste para nós que realizamos, para nós que fazemos eventos também de cinema e é torcer para que se acabe não somente o vírus, mas também este pensamento obtuso que existe hoje em dia aqui no país não só em relação ao cinema, mas como à cultura em geral.
Por outras frentes de resistência, a ex-secretária de Cultura do Rio de Janeiro, Adriana Rattes, sócia-fundadora do Grupo Estação Net de Cinemas, que são, inclusive, fortes parceiros do Festival do Rio e de inúmeros outros festivais que ajuda a resistir, como o Curta Cinema, a Semana – Festival de Cinema e muitos outros... Além de ser forte defensora do cenário local através de várias parcerias com cineclubes (atualmente online, confira registros aqui), sessões especiais para escolas apostando na formação, e agora com uma excelente novidade para quem se sentia reticente ainda de reocupar as salas de cinema: a Sessão Meu Bonde, onde você pode reservar a sala de cinema apenas para você ou mesmo para um grupo seleto de amizades e familiares em quem você confia nesta quarentena como confia na sua própria bolha:
Revista Fórum: Diante deste ano pandêmico, você acredita que o cinema ainda possa ocupar o lugar atemporal de cura para a alma? Qual a diferença que um filme pode fazer?
Adriana Rattes: Eu super acredito que sim! Os filmes e as obras audiovisuais pra mim sempre foram a janela mais importante para o mundo e uma fonte inesgotável de conhecimento e compreensão das pessoas e das coisas. A gente até pode usufruir disso em casa, pois já se tem equipamento pra assistir em casa com muita qualidade - e isso é bom! Mas existe uma experiência insubstituível em assistir a um filme numa sala totalmente imerso, com todos os sentidos convergindo para a história passando ali, e se sentir dentro do filme. É estar sozinho e ao mesmo tempo compartilhar com estranhos aquela experiência, sentindo uma energia compartilhada. A forma de assistir a filmes sempre foi mudando de tempos em tempos, as salas também, e a pandemia certamente terá um papel nisso, vai acelerar o processo, ter um efeito mais disruptivo, mas a mudança já vinha e continuará vindo. Pra mim, nem todo filme precisa ser visto numa sala de cinema, mas existem e existirão sempre aqueles que merecem as salas, que estão à altura desta celebração que é se juntar a outros para uma experiência estética, sensorial, emocional absolutamente íntima, mas que se fortalece neste ambiente coletivo.
Revista Fórum: Como os cinemas tiveram autorização das autoridades para funcionamento dentro de todos os protocolos de segurança, você poderia explicar um pouco mais como funciona esta sessão “Meu Bonde”?
Adriana Rattes: “Meu Bonde” é uma ideia pra lidar com os riscos e inseguranças da pandemia, sem dúvida, mas acho tão legal que pode ficar pra sempre. Pode ser uma dessas novas formas que eu falava. Você chama a sua galera, escolhe a sala, o dia, o horário e... Sua excelência, o filme! Tem que se programar com uma semana de antecedência, só isso. Pode escolher um cardápio de bebidas e comidinhas. Tem os filmes da semana, pré-estreia e filmes de acervo, com curadoria do Estação. Fazendo um exercício sobre o futuro, eu acho que os cinemas serão lugares cada vez mais especiais, pensados para públicos específicos, telas, som e projeção com efeitos incríveis, um jeito cada vez mais descontraído e confortável e divertido de estar lá dentro, programação bem curada, variada, formas diversas de receber o público, atividades artísticas integradas, canal próprio de streaming... Vamos ver... Tem uma ideia importante sobre a vida, que nesse cenário distópico da Covid-19 a gente costuma esquecer: “faz-se o caminho ao andar”. O futuro não está dado, está por ser inventado.
Revista Fórum: Como a resistência dos cinemas também é uma resistência pela arte e pelo nosso patrimônio histórico cultural que o Estação Net sempre exerceu em sua curadoria, se você pudesse enviar uma mensagem cinéfila para 2021, o que diria a todo o público que apoia e abraça os cinemas?
Adriana Rattes: Defenda e proteja as salas de cinema. Se você ainda não se sente seguro de ir numa, busque o seu jeito de apoiá-la, ajudá-la. Se apenas se acomodou com a ideia de ficar em casa procurando por horas um filme que preste, até perder a vontade de ver qualquer coisa, volte lá na sua sala preferida e veja como ela está bem cuidada, segura, e é um lugar aprazível e estimulante. Tome um café conosco. Reserve uma sessão Meu Bonde como festa de fim de ano - 20 pessoas numa sala de 100 lugares, já imaginou? E, acima de tudo, tenha certeza que estamos fazendo o possível pra resistir a este momento e para inventar os caminhos que o Estação ainda pode trilhar.