Eis que os lugares naturais foram invertidos. Este colunista, que pode ser encontrado todos os domingos aqui na Revista Fórum a escrever sobre cinema, sempre tentando trazer algumas entrevistas exclusivas para vocês, desta vez trocou de lugar e foi entrevistado (confira a gravação clicando aqui).
Em seu talk show de humor “Lady Night”, a atriz e roteirista Tatá Werneck convidou este que vos escreve para o quadro “Entrevista com o Especialista”, no canal Multishow, da Net, que foi ao ar esta semana, no intuito de conversar com um crítico de cinema sobre o lado mais descontraído de sua profissão. Agora, retribuímos a recíproca trazendo Tatá para a nossa berlinda e usamos o ofício da crítica para destrinchar as técnicas e a linguagem criativa desta que é uma das grandes comediantes contemporâneas no Brasil.
Algumas características de Tatá são muito marcantes para aqueles que já apreciam assistir suas obras, seja no cinema ou na televisão, como a mais recente reprise da novela “Haja Coração”, na Globo, no papel do alívio cômico Fedora. Como representante desta geração mais recente de nomes irreverentes da comédia moderna, egressa da geração MTV e das trocas rápidas com a internet, o tempo cômico que lhes serve de marca registrada decerto é constantemente atualizado, a fim de acompanhar o enorme fluxo de informações dos novos tempos.
Não apenas as falas e ganchos precisam ser acelerados, deixando pouco espaço para a resposta ou para o fôlego, como a própria reflexão precisa estar pronta para improvisos espontâneos – mais precisos do que o saudoso Rubens Ewald Filho narrando as homenagens póstumas do Oscar, ou do que Galvão Bueno em jogo de 7 x 1.
É evidente que este humor necessita de pesquisa e um bom acervo de experiências previamente cogitadas para não ser pego completamente de surpresa. Porém, só quem esteve face a face com uma comediante deste quilate sabe muito bem como as reações necessitam ser velozes, a fim de não ser atropelado a partir da inversão de papéis: a comediante se torna ela própria uma ferrenha crítica ao colocar um espelho diante do entrevistado e refletir sobre suas idiossincrasias.
Com um bom humor reverso, ela brinca de provocar para atrair o interlocutor como isca usando pequenos jogos de palavras, ao mesmo tempo ingênuos e maliciosos. Uma brincadeira de morde e assopra que faz com que, nas palavras da própria, em seu programa, “a quinta série que habita em mim saúda a quinta série que habita em você”. Uma pureza infantil e maturada ao mesmo tempo, fazendo com que todos possam se identificar, e onde tudo seja permitido, como se ganhássemos passe livre para sermos crianças novamente no parquinho do amadurecimento. E Tatá ainda acerta de forma mais pungente quando alcança a autocrítica e se arrisca de fato junto com a piada, tendo algo valoroso a perder, como na piada que fez onde responde: “Eu não vejo Globo (a própria emissora dela), eu sou contra”.
Se todo este processo lhe parecer rápido na edição, podemos garantir, ela é ainda mais rápida numa gravação ao vivo. Até porque podemos fazer um pequeno cálculo juntos no intuito de compreender como funciona o seu timing de comédia. A montagem corta o tempo real de um diálogo em dois tempos, ou seja, em plano e contraplano, ação e reação... E, quando lhe mostram na TV o segundo plano, com a reação dos convidados, ela, na verdade, já estaria automaticamente lançando a pergunta seguinte no extracampo. Tal réplica, para o espectador, parece que apenas irá ser feita no terceiro plano, já com close no rosto dela... Porém, está acontecendo tudo simultaneamente. Isto porque, quando você mal terminou de responder à questão anterior, já está refletindo sobre a próxima. Ou seja, nem a edição dá conta da espontaneidade do calor do momento, pois tudo acontece ao mesmo tempo, ainda que a TV lhe preste uma ilusão de ordem compartimentada.
Há muita coisa que fica de fora, sim, até por ser pré-gravado. No entanto, Tatá praticamente jamais pede por um segundo take, fazendo as sequências todas praticamente de uma só vez, e cocriando de acordo com que os desvios se distanciam do roteiro original. Ela é realmente muito rápida em reescrever os improvisos e adaptações em sua cabeça, o que vem a calhar com o fato de ser atriz e também roteirista (além de montar, às vezes, seu próprio material na edição). E isto lhe dá uma grande vantagem no jogo de cena em pensar e responder numa só ação... Se ela sente 2 segundos de demora no feedback do convidado, ela já parte para a pergunta seguinte, sem deixar de preencher a cena, e geralmente levanta a bola de forma generosa para que a outra pessoa possa aproveitar a chance de um retorno.
Portanto, o fato de escrever com o corpo e com as palavras faz com que literalmente possamos ler seus gestos e movimentos. É curioso pensar que alguns de seus trejeitos e marcas registradas, como a mexida no cabelo e nos óculos, o famoso “beijo de língua”, além das caras e bocas, sejam na verdade formas de marcar sua dicção como se fossem vírgulas, pontuações e parágrafos... Quando ela quer mudar o tema completamente, ela utiliza, por exemplo, a piada do “beijo de língua” que ela dá no ar. Assim como ela usa os óculos para realçar uma ênfase do clímax da piada. É curioso pensar na presença cênica como todo um instrumento narrativo, que conta muito mais com gestos e instantes do que necessariamente apenas com palavras (por mais que estas não lhe faltem).
Por fim, o que não poderia faltar aqui é responder a uma pergunta que Tatá fez a este colunista e que pareceu ficar sem réplica na montagem do programa, mas que foi sim correspondida ao vivo. E, agora, vale ser trazida para diálogo com todos que vieram perguntar. Em determinado ponto, ela pergunta por que o ponto de vista de um crítico deveria valer mais do que o da própria pessoa que realizou o filme...? Uma ótima pergunta, de fato. Só que a questão, na realidade, é outra. Diferente de quem fez o filme, que assina numa posição singular e isolada (a não ser que coassine a direção com outras pessoas de forma coletiva), e que solta seu filme como a um filho no mundo, a crítica de cinema é múltipla por natureza e irá reencontrar este rebento sob vários ângulos e em tempos diferentes. Assim como não existe apenas um espectador, ou perfil, não existe só um tipo de visão crítica.
Tal olhar pode vir de homens e mulheres, cis ou trans, hétero ou LGBTQ, de várias origens étnico-raciais e territórios culturais... Cada qual trazendo sua bagagem e experiência única de olhar, e imergindo estes mesmos filmes em diferentes campos de estudo para ampliar seu alcance. E isso é ótimo para o filme. É o que tem o potencial de torná-lo imortal... Não como condição absoluta, mas relativa aos tempos de cada período e transformações sociais. Neste sentido, podemos citar pensadores especializados, como Jacques Rancière, sobre a teoria do espectador emancipado (o filme deixa de ser apenas da pessoa que o realizou), ou como Siegfried Kracauer, com seu pensamento sobre exterritorialidade (uma obra fora do seu lugar de origem ou intenção ganha novos encontros e significados). Ou mesmo podemos citar a pensadora Bell Hooks, com a teoria de seu olhar opositivo (onde mesmo imagens que podem não nos representar, ou até mesmo nos violenta, podem ser hackeadas e reocupadas, ressignificadas no imaginário popular).
Eis algumas coisas que compõem a magia da crítica de cinema, mesmo que às vezes possamos até rir dela... Ou de quem a escreve. Assim como podemos olhar de volta para o humor e entender como ele é feito através dessas mesmas ferramentas críticas. E quem sabe, ao ler esse texto decupando a comédia, não possam surgir jovens que se inspirem na Tatá quando crescerem para dar continuidade a esta arte tão recompensadora que é fazer rir, tornando-a imortal, como merece?