“Alguma coisa está fora da Nova Ordem Mundial”, como já dizia Caetano. A ficção ganhou um rival imbatível na realidade em 2020, e está difícil competir. Aquilo que considerávamos estética da distopia virou o conceito do dia a dia nos noticiários. A política, então, abraçou de tal forma o surreal que, até mesmo gêneros como a comédia e a paródia, outrora alívios na pressão da rotina, foram cooptados por uma linguagem de fake news, correntes de Whatsapp e líderes negacionistas... Líderes estes que colocam a população em risco no meio da pandemia mundial, como gado, conseguindo soar tão absurdos quanto as mais exageradas caricaturas humorísticas.
No entanto, ainda existem roteiristas acreditando na tentativa de superar essa temporalidade distópica, especialmente na ampliação da acessibilidade dos streamings em espaços de quarentena. Afinal, mesmo com a reabertura, os cinemas continuam às moscas sob o medo popular de contaminação coletiva... Portanto, vale lembrar que continuam até 04 de novembro as sessões online da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (saiba mais aqui), há de exemplo filmes polêmicos consonantes a tudo isto relatado acima como o premiado “Nova Ordem” de Michel Franco (do cult “Depois de Lucia”, 2012), debatendo o crescimento do fascismo atual. Além de alguns filmes que seriam carro-chefe do circuito comercial e estão sendo escoados nas plataformas digitais, como a volta do icônico personagem “Borat: Fita de Cinema Seguinte” já disponível na Amazon Prime Vídeo, e também debatendo a curva ascendente do fascismo contemporâneo.
Por falar no personagem mais famoso do comediante camaleônico Sacha Baron Cohen, Borat volta mais uma vez cercado de discórdia. Em 2006, quando na estreia do filme original, o ator recebeu inúmeros processos por seu humor subversivo. Agora, ele parodia o já caricatural presidente Donald Trump, além de sobrar farpas igualmente para o presidente Jair Bolsonaro. Como habitual, Trump usou as redes sociais como arma de resposta, declarando: “Eu não acho ele engraçado, pra mim ele é detestável” – uma posição compreensível de repulsa para quem é o principal alvo das piadas cáusticas. Sacha também não deixou barato, replicando à altura: “Donald, eu aprecio a publicidade grátis para 'Borat'. Eu admito, também não te acho engraçado. Mas o mundo inteiro ri de você mesmo assim”. – uma questão similar aos abusos cometidos pelo poder executivo brasileiro, também mencionado no filme.
Para ofender tanto assim, por sinal, a trama é um fiapo ramificado do exemplar anterior: desta vez, Borat viaja do Cazaquistão para os EUA na tentativa de estreitar a relação entre seu país com o poderio despótico norte-americano no mundo. Para tanto, o plano é oferecer sua filha em “casamento” (ou diria, “em sacrifício”) para um dos aliados de Trump, de modo a criar um pretenso laço medieval, em troca deste “dote”, oferecido a pessoas do naipe do vice-presidente Mike Pence ao advogado pessoal do presidente, Rudolph Giuliani (este se envolve na cena mais escandalosa, tendo chamado até a polícia na vida real ao descobrir que foi enganado nas filmagens). No entanto, é evidente que isto é uma paródia da realidade, e a ironia paradoxal do filme é afirmar as coisas mais grosseiras para gerar desconforto com o extremismo conservador que estamos vivendo – como a submissão extrema da mulher como mote de realização pessoal (comparação feita o tempo inteiro com Melania Trump, ex-modelo eslovena que se porta como “esposa-troféu” mesmo nos dias de hoje de emancipação, em analogia com Michelle Bolsonaro).
Todavia, falta responder a uma pergunta central: por que trazer tal personagem de volta logo agora, 15 anos depois? Lembremos que, em determinado período, a fama chegou a ser tão grande que os fãs confundiam criatura com criador, achando que Sacha de fato fosse Borat, ainda que ele tenha criado inúmeros outros personagens bastante conhecidos como Ali G. (popularizado pelo videoclipe “Music” de Madonna), Brüno e Almirante General Aladeen. O curioso é que a maioria de suas personagens são jornalistas ou correspondentes estrangeiros, o que se torna ainda mais pertinente com a atualidade de fake news por andarmos vendo uma caça às bruxas mundial de governos fascistas aos meios de comunicação, hostilizando e demonizando o jornalismo.
O dispositivo da maioria dos filmes mais autorais de Sacha são constituídos justamente por personagens fictícios inseridos na realidade ao redor para interagir com pessoas comuns como se as entrevistasse, mas na verdade provocando reações inesperadas pelos absurdos que provoca. Um pseudo formato documental que costuma ser denominado como “mockumentary”, seja roteirizado ou não, para dar a impressão de realidade a partir do risível. E esse estilo poderia estar extremamente saturado agora que a realidade superou a mais louca ficção, no entanto, quem diria que, mesmo com seus excessos e algumas piadas bastante datadas, Borat se encaixaria como uma luva no presente de grego que estamos vivendo. A nova ordem mundial praticamente conclamou com que um personagem como ele regressasse.
Ainda que possa soar às vezes excessivamente afetado, Sacha aparece com outras caracterizações mais insignificantes durante o longa-metragem, no intuito de descansar a imagem desgastada de Borat e dar luz à nova personagem da filha, na pele da ótima atriz búlgara Maria Bakalova. Na verdade, algumas sacadas controversas com o coronavírus, o holocausto e a supremacia branca ainda tiram reações realmente chocantes do cidadão médio dos EUA reagindo a seus personagens. Afinal, a “piada” é menos com a cara do comediante e sim com a cara da realidade, que ainda aceita certas ofensas naturalizadas por refletir intolerâncias reais.
Para quem já viu o filme anterior, o truque talvez não funcione da mesma forma, contudo, para quem está entrando pela primeira vez neste universo harmonizado com a contemporaneidade, talvez seja melhor inverter e assistir à sequência antes do original – ambos podem ser compreendidos de modo independente um do outro. Afinal, vai ser difícil fugir de Sacha este ano com tanta mídia, inclusive o novo lançamento da rival Netflix, já cotado para a temporada de premiações, “Os Sete de Chicago” de Aaron Sorkin (diretor oscarizado pelo roteiro adaptado de “A Rede Social” em 2011).
Noutra pegada bem mais sombria e sisuda, o diretor mexicano Michel Franco, recentemente ganhador do Grande Prêmio do Júri na última edição quarentenada do Festival de Veneza, teve seu novo trabalho “Nova Ordem” como filme de abertura da 44ª Mostra de SP no último dia 22 de outubro – que, enfim, pôde ser conferido pela Fórum. Para quem não conseguiu assistir à concorrida sessão online, primeira a esgotar rapidamente na plataforma Mostra Play, não se preocupe, pois não se falará de spoilers aqui. Tão somente iremos dialogar com a estética da violência sob o manto de denúncia ao fascismo, que não sai das mídias e dos governos no mundo inteiro, potencializado pelas discrepâncias na pandemia de 2020.
Michel Franco é mais um nome que gosta muito de impactar seu espectador, só que, ao contrário de Sacha Baron Cohen, o faz com dramas viscerais e sofridos. A narrativa de seu longa-metragem perpassa uma família rica e poderosa cuja festa de casamento da filha está acontecendo no meio de uma aparente revolução social. Quando as disparidades de classe alcançam um nível insustentável, na teoria, levariam ao rompimento da bolha de modo em geral incendiário, como acontecerá também nesta trama. Porém, assim como o primeiro plano do filme, que mostra um belo quadro composto por vários fragmentos visuais multicoloridos, o roteiro também irá se desvelar aos poucos como peças de um quebra-cabeça...
O México é um país que anda gerando cineastas e filmografias bastante renomadas no mundo inteiro, como o aclamado “Roma” de Alfonso Cuarón. Porém, quase dando alguns passos para trás, “Nova Ordem” engana quando aparenta trilhar representações mais interessantes para as personagens de descendência indígena no povo mexicano, habitualmente retratadas em posições subalternizadas. Quando achamos que vamos ver uma verdadeira Queda da Bastilha da elite, o filme demonstra que as garras do fascismo operam até mesmo aí, cheio de cordas invisíveis a manipular a marionete de classes. E que uma aparente tomada de poder popular pode ocultar interesses escusos de poderosos que jamais deixaram de comandar.
É inegável que Franco seja um grande esteta quando se trata de produzir imagens marcantes, mesmo no grotesco ou no atroz, especialmente quando consegue operar com sarcasmo ou ironia. Mas, quando sua estética vira soberba, algumas sequências impactantes se convertem não apenas numa denúncia vazia, como em efeito reverso. Há de exemplo uma espécie de “campo de concentração” de pessoas ricas, mal resolvido e desproporcional ao que havia sido trabalhado até então. Isto porque ao deixar algumas personagens num plano raso demais, o que ele acaba por fazer é culpabilizar as vítimas e humanizar o opressor – o que poderia até ser parte da catarse, já que tudo no filme é invertido, seja o título e os créditos finais, apresentados com letras de trás pra frente, mas que soa apenas pretensioso e banalizado.
Para quem perdeu a chance de assistir “Nova Ordem” e tirar suas próprias conclusões, vale acrescentar aqui também outras boas dicas da 44ª Mostra de SP, para todos os gostos e gêneros. Como para quem gosta de terror, há o exemplar “Meu Coração Só Irá Bater Se Você Pedir” de Jonathan Cuartas. Ou o thriller psicológico que coloca as redes sociais em xeque-mate no tenso “Suor” de Magnus Von Horn. Para relaxar, há o fofo “Summertime” de Carlos López Estrada. E, para refletir, há os dramas familiares “Apenas Mortais” do chinês Liu Ze, e os iranianos “Sem Cabeça” de Kaveh Sajjadi Hosseini e “Pari” de Siamak Etemadi. Também, em termos de documentário, quem quiser debater a covid-19 a sério, assista ao poeticamente pungente “Coronation” do cineasta e artista plástico Ai Weiwei, que metaforiza a origem da pandemia na cidade de Wuhan na China, com uma trilha sonora arrebatadora.
Por fim, não deixem de prestigiar os exemplares brasileiros nesta edição da Mostra, como “O Livro dos Prazeres” de Marcela Lordy com Simone Spoladore, adaptando o romance de Clarice Linspector no ano de seu centenário; “Curral” de Marcelo Brennand, com um dos astros de “Bacurau”, Thomás Aquino, e participação do baluarte da dramaturgia José Dummont; “Nheengatu” de José Barahona; as estreias na direção de longas-metragens de ficção de Djin Sganzerla com “Mulher Oceano” e Dainara Toffoli com “Mar de Dentro”, protagonizado por Monica Iozzi; além de “Verlust” de Esmir Filho, com as estrelas incandescentes Andréa Beltrão e a cantora Marina Lima, além do referencial ator chileno Alfredo Castro. Esses e muitos mais exemplares serão analisados melhor na coluna da semana que vem, quando daremos as dicas finais da 44ª Mostra de SP a se encerrar no dia 04 de novembro (confira os filmes na plataforma da Mostra Play aqui).
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum