“Boi”, o primeiro disco solo da carreira de Marcelo Pretto, a despeito de ser uma grande obra límpida e irretocável, nos revela alguns absurdos que rondam a vida cultural brasileira. O maior de todos é o fato de um cantor e pesquisador do nível dele só ter chegado agora, após anos e anos de carreira, ao seu primeiro álbum solo.
O outro absurdo, e também tão óbvio, é que existam tão poucas obras dedicadas a dar, como o próprio artista chama, “um olhar contemporâneo sobre um dos gêneros populares mais ricos do Brasil”, o Bumba meu Boi.
Marcelo tem vários discos com inúmeros artistas. Com o grupo A Barca refez a viagem de Mário de Andrade duas vezes país afora, vendo, ouvindo, gravando e reinventando as festas do Brasil profundo.
Com o grupo Barbatuques explora os sons da voz e do corpo, sempre também em conexão com a canção popular.
Já com o violonista Swami Jr. fez o lindo álbum "A Carne das Canções", em (2014).
No final das contas, fica claro o recado que Marcelo sempre nos manda em todas as suas produções. Ele gosta mesmo é de gente, das festas, da música compartilhada tanto na sua feitura quanto na audição.
E, mesmo quando resolve gravar só, o álbum homenageia um gênero que é feito por todos. E para tal, chamou vários amigos. Quem produziu foi o percussionista André Magalhães, companheiro da Barca de tantas viagens. Além dele, estão no disco Kiko Dinucci, Douglas Germano, Roberto Ricci, Lenine, Barbatuques, Vincent Segal, Guilherme Kastrup, Renata Amaral, Zé Pitoco, Tomas Rhorer, Nailor Proveta e o compositor e arranjador português Mario Laginha.
O álbum propriamente dito é um desfiar de belezas sem fim. A voz de Marcelo – se é que se pode chamar de uma só, tamanha a versatilidade – soa solta, repleta de beleza e orgulho com as obras que interpreta. Pretto é um cantor único, de afinação precisa, timbre que consegue funcionar tanto com intensidade quanto nos momentos mais delicados.
No repertório, toadas tradicionais como “Reis na Encantaria” (Mestre Humberto de Maracanã), “Boi Chegou” (Mestre Edmundo), “Na Madeira do Meu Boi” (Pai Euclides Talabyan), “Já Chegou” (Boi do Pará) e outras inéditas como “Capitão do Mato” (Douglas Germano) e “Pula Caboclo” (Roberto Ricci).
O álbum “Boi” nos deixa a impressão que toda a experiência acumulada pelo autor foi compartilhada de maneira exata. As festas da Barca, os vocais percussivos do Barbatuques e a sofisticação sempre presente em tudo o que grava estão nele, com a proeza de manter intactas as intenções dos cantos tradicionais.
“Boi” tem uma beleza rara sob qualquer ângulo que se queira ouvir. É música tradicional brasileira que soa contemporânea, pronta para qualquer rádio do planeta e também pra voltar pra festa.
Um álbum que já nasce com jeito de clássico, daqueles que a gente via ouvir e comentar pro todo o sempre.