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CULTURA
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João reinventou um país que perseguiu a perfeição à exaustão. Um país de acordes límpidos, tempos sincopados, emissão suave e afinação impecável. Uma quadratura onde tudo é ciência e técnica, arte, expressão e inovação.
João inventou uma canção redonda, exata, que encantou o mundo. Uma expressão musical que dialogava com a poesia de Drummond, o Grande Sertão de Guimarães Rosa, a arquitetura de Niemeyer, a geografia de Milton Santos, o futebol de Pelé, Garrincha, os sons de Jobim, Vinícius e Villa-Lobos.
João orgulhou o Brasil. Nos mostrou modernos, desenvolvidos, amplos, feitos para o mundo contemporâneo, rebeldes e transformadores. Tudo o que for dito – e têm-se falado demais – é pouco perto do que nos deixou enquanto significado e significante, espaço e tempo, som e silêncio.
Mesmo os que não gostam de João são definitivamente influenciados por ele, reinventados pela sua concepção musical, por seus sussurros, emissões e tempos.
João é o Brasil moderno que, aos 88 anos de idade, se viu entregue de volta a um país arcaico e perigoso. Um pais onde artistas e visionários são ameaçados e agredidos nas ruas por fascistas odientos. Um lugar onde se extermina o fomento à cultura e se reduz a educação ao mínimo inquestionável.
Um Estado erigido pelo raciocínio de um só tempo. Ou pela total falta dele. Um país saudoso de seus piores pesadelos, pré-iluminista, que sonha com uma era anterior a si próprio, quando não era (e nem nunca foi) nem sequer o país que pretende se desenhar, atrasado, mofino, avarento, excludente.
João se vai – e isso é extremamente irônico – no exato instante em que o país que ele nos deixou é tomado de assalto por boçais. Uma gente que, de tão desqualificada, não imaginávamos possível. Uma fauna tacanha que, em pleno trópico efervescente de cores e sons, etnias múltiplas e sexualidades diversas, quer nos reduzir de volta ao que nunca fomos. Ao azul e rosa, ao papai e mamãe, à marcha bisonha das arminhas, às fraquejadas e ao extermínio de pretos, indígenas, LGBTIs e comunistas.
João é o Brasil grande, perfeito, orgulhoso. João nos fez do mundo, altaneiros, profusos. Segundo o Nobel de literatura, Bob Dylan, um sinônimo da perfeição que ele, agraciado e consagrado, afirmava ter desistido há tempos de alcançar.
João não tinha mais lugar no Brasil atual. Um artista que ouvia sons indistintos, desafinações improváveis e alaridos não cabia mais no templo do jeitinho, dos ministros boçais e dos pseudofilósofos racistas e odiosos.
João Gilberto era de outro mundo. E para lá se foi.