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Hoje é dia de São Jorge. No estado do Rio de Janeiro é feriado. O santo cada vez mais querido em todo o Brasil é Ogum no candomblé. Os dois são protetores, guerreiros. A oração de São Jorge é linda e estampa camisetas e cartazes por todas as partes. Virou canção de Jorge Ben Jor, “Jorge de Capadócia”, regravada por Caetano e pelos Racionais MC’s. O santo, por sua vez, encontra cada vez mais adeptos:
Jorge sentou na praça
na cavalaria
eu estou feliz
porque eu também
sou da sua companhia
Eu estou vestido
com as roupas
e as armas de Jorge
para que meu inimigos
tenham pés e não me alcancem
para que meus inimigos
tenham mãos e não me toquem
para que meus inimigos
tenham olhos e não me vejam
e nem mesmo pensamento
eles possam ter
para me fazerem mal
A lenda da proteção fica mais explícita, explode em comoção na segunda parte e se espraia pela cidade maravilhosa, combalida pela violência:
armas de fogo
meu corpo não alcançarão
facas e espadas se quebrem
sem o meu corpo tocar
cordas e correntes se arrebentem
sem o meu corpo amarrar
pois eu estou vestido
com as roupas e as armas de Jorge
Jorge é de Capadócia
salve Jorge, salve Jorge
salve Jorge, salve Jorge
A história do sincretismo e da proibição das religiões afro-brasileiras é velha conhecida. Os santos católicos não significavam nada para o povo negro, mas os orixás eram proibidos. A cantilena simplista da substituição de um pelo outro se alastrou de fato e, pelo menos no Rio de Janeiro, não há quem hoje não confunda o santo guerreiro com Ogum, o senhor do ferro, da guerra, da agricultura e da tecnologia.
A junção dos dois mitos se deu de maneira comovente na canção “Ogum”, de Claudemir e Marquinhos Pqd e reinventada de maneira magistral por Zeca Pagodinho em seu álbum de 2008, “Uma prova de amor”. Nela, o próprio Ben Jor declama a Oração de São Jorge, logo após a canção em homenagem ao orixá.
Nela um é o outro e vice-versa, como se, ao menos na cidade de São Sebastião (um outro santo que ainda não havia entrado na história) do Rio de Janeiro, os arquétipos se confundem e a parte mais fragilizada da população se protege e se mistura em um mesmo e forte laço:
Eu sou descendente Zulu
Sou um soldado de Ogum
Devoto nessa imensa legião de Jorge
Eu sincretizado na fé
Sou carregado de axé
E protegido por um cavaleiro nobre
Se vou na igreja festejar meu protetor
E agradecer por eu ser mais um vencedor
Nas lutas, nas batalhas
Se vou no terreiro pra bater o meu tambor
Bato cabeça, firmo ponto, sim, sinhô
Eu canto pra Ogum
Ogum…
Ogum, um guerreiro valente
Que cuida da gente, que sofre demais
Ogum, ele vem de Aruanda
Ele vence demanda de gente que faz
Ogum, cavaleiro do céu
Escudeiro fiel, mensageiro da paz, Ogum
Ogum, ele nunca balança
Ele pega na lança, ele mata o dragão
Ogum, é quem dá confiança
Pra uma criança virar um leão
Ogum, é um mar de esperança
Que traz a bonança pro meu coração, Ogum
Note que a letra do belo samba não faz distinção entre santo e orixá. Não se sabe nem percebe onde acaba um e começa o outro. A lança forjada pelo orixá criador do metal é feita do mesmo aço que mata o dragão na lenda de São Jorge.
Ogum é considerado o principal orixá a descer do Orun, o céu do Candomblé, para o Aiye, a Terra, após a criação, constituindo com isso a futura vida humana. É o guerreiro e protetor, com trajetória intimamente ligada à sobrevivência.
São Jorge é o santo militar. Nascido na Capadócia, região de Anatólia que hoje faz parte da Turquia, cedo se mudou para a Palestina, onde se forjou guerreiro. Acabou degolado por se voltar à fé cristã e a sua lenda se espalhou mundo afora.
O encontro dos dois mitos, na cidade do Rio de Janeiro, é um dos mais importantes e significativos fatos oriundos da miscigenação, da constituição de um novo povo, que se traduz em sua fé e capacidade de existir e resistir.