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Por Marina Costin Fuser*
Este ano a cerimônia do Oscar foi menos assumidamente política do que nas edições anteriores, quando pipocavam campanhas como "Oscar so white", em que realizadores negros clamavam por um tratamento racialmente equitativo no processo de premiação, e de sucessivas campanhas feministas, que envolviam atrizes consagradas, como Frances McDormand, Reese Witherspoon, Maryl Steep, Patricia Arquette e Emma Watson, entre outras, que articulavam discursos e usavam seu espaço de visibilidade para reivindicar o reconhecimento do trabalho das mulheres na cena.
Por outro lado, 2019 foi o ano da colheita: 7 profissionais negros e 15 profissionais mulheres receberam a estatueta. Hannah Beachler foi a primeira pessoa negra a ser premiada por design de produção por Pantera Negra, que também consagra o trabalho da figurinista negra Ruth E. Carter. Nina Hartstone é outra que ganhou uma categoria comumente masculina com o Oscar de melhor edição de som, por seu trabalho em “Bohemian Rhapsody”. Elizabeth Chai Vasarhelyi e Shannon Dill foram premiadas por melhor documentário (“Free Solo”), Rayka Zehtabchi e Melissa Berton tiveram o mérito de ganhar melhor documentário curta-metragem por "Absorvendo Tabu", um documentário que rompe o silêncio em torno da menstruação. Em suma, foi uma premiação relativamente mais generosa com quem antes ficava de fora da grande festa cinema.
Os discursos foram mais subjetivos, ainda que emocionantes, como foi o caso de Olivia Colman, que não acreditava que ia ganhar competindo com Glenn Close (A Esposa) e Yalitza Aparicio (Roma) ao Oscar de melhor atriz. Close é uma atriz de calibre, enquanto Aparicio teve destaque por ser a primeira indígena a ser indicada para o prêmio nesta categoria. Mas Olivia estava ótima no papel de rainha bufônica. As lágrimas de Lady Gaga podiam ser questionadas, mas seu talento é inquestionável com com o hit Shallow. Regina King fez um discurso emocionante, como sendo "um exemplo do que acontece quando se investe apoio e amor em uma pessoa". Mais uma mulher negra leva para casa a estatueta. Porém nem tudo eram lágrimas e suspiros: dois discursos políticos deram o tom dessa cerimônia, demarcando o lugar das alteridades na indústria cinematográfica:
O primeiro foi o discurso de Rami Malek, que afirma seu lugar enquanto filho de imigrantes egípcios e o desafio de interpretar um imigrante homossexual que se tornou um dos maiores artistas de todos os tempos: Freddie Mercury. Ele arrancou suspiros.
O clímax da festa se deu com o discurso arrebatador de Spike Lee, ao ganhar o Oscar de melhor roteiro adaptado por Infiltrado na Klan (que merecia muitos prêmios):
"Hoje é 24 de fevereiro, o mês mais curto do ano. Também é o mês do ano da história negra. 1619... Há 400 anos nós fomos roubados da África e trazidos para a Virginia, escravizados. A minha avó, que viveu até 100 anos de idade, apesar de sua mãe ter sido escrava, conseguiu se formar. Ela viveu anos com seu seguro social, e conseguiu me levar para a universidade NYU. Diante do mundo, eu gostaria de reverenciar os ancestrais que construíram esse país, e também os que sofreram genocídios. Os ancestrais que vão ajudar a voltarmos a ganhar nossa humanidade. As eleições de 2020 estão chegando, vamos pensar nisso. Vamos nos mobilizar, estar do lado certo da história. É uma escolha moral. Do amor sobre ódio. Vamos fazer a coisa certa".
Opinião Pública dividida
Eu torcia por Infiltrado na Klan, posto que o filme capta politicamente o espírito do tempo que vivemos, com um cenário polarizado entre fascismos e resistências acirradas, e o choque inevitável entre dois projetos de mundo. Movimentos como o "Black Lives Matter" colidem com o ressurgimento de grupos racistas, neonazistas e fascistóides, inclusive o despertar dos encapuzados adormecidos da Ku Klux Klan. Fazia muito sentido que o filme de Spike Lee fosse a pérola da noite. A opinião pública estava dividida entre este filme e Roma.
Roma é um filme plasticamente impecável, com uma fotografia e uma direção de arte de tirar o chapéu, e com o arco da narrativa construído com sensibilidade muito apurada no que condiz à relação entre Cleo e sua patroa, cujos atritos pontuais provenientes de crises que se intercalam não impedem que elas forneçam amparo e empatia uma a outra nos momentos cruciais, embora de forma apaziguadora e subordinada até o final. A relação de poder entre patroa e empregada permanece inabalável. O pano de fundo da Guerra Sucia, com Luis Echeverría e as guerrilhas estudantis daria pano pra manga se não fosse tão descolado da trama. Faltou ligar os pontinhos, ainda que sutilmente. Mas apesar de ser um filme tecnicamente perfeito, com a engenhosidade que a academia gosta, eu achei o enredo monótono e maçante. Merecia concorrer a algumas estatuetas por não dar ponto sem nó, e com certos traços de brilhantismo, mas a produção de conjunto não me fez decolar.
Momento polêmico da noite
Poucas pessoas esperavam que Green Book se consagraria como melhor filme. Isso não foi bem recebido por grande parte do público cinéfilo, que manifestou repúdio nas redes sociais, acusando o filme de racista, de "passar pano pra racismo" e de "domesticador" dirigindo-se ao enredo que desenvolve a inversão de papéis entre um motorista italiano que morava em Nova York na década de 1960 e um músico negro de classe abastada. O choffeur italiano se mostra racista em sua conduta arrogante porém chucra, seu linguajar feio, sujo e malvado. Mas no decorrer da estrada as amarras de poder se desfazem em camadas de tessitura mais fina. Foi o que me intrigou no filme: os momentos de desarranjo, que nos permitem realinhar nossas percepções face aos deslocamentos.
A começar pelo simples fato de que, ao tocar música erudita, o músico em turnê contraria as expectativas rítmicas mais triviais projetadas num corpo negro. Seu apartamento suntuoso no andar de cima do conspícuo Carnegie Hall, sua conduta impecável de lorde inglês, e em suma, todas as nuances suscitam estranhamento e um tremendo desconforto. Ao atravessar o Sul profundo, o racismo sulista passa a ser um obstáculo bastante complicado no percurso da turnê. Quando o músico é pego numa relação sexual com outro rapaz, o motorista consegue desbaratinar e subornar o guarda. Mas isso é contingente na narrativa, já que no próximo encontro com as forças policiais, o sangue do italiano ferve e ele acaba dando um soco no agente racista. O músico os tira dessa fria telefonando para ninguém menos do que Robert F. Kennedy. Mas isso tampouco se configura como um ato de salvação. A ênfase está nos grilhões e no vínculo de cumplicidade que se estabelece entre os dois sujeitos, que se viram para escapar das emboscadas.
Estou ciente de que muitas pessoas não receberam bem a ambiguidade inerente ao espinhoso arco dramático dos personagens. Não penso que possamos reduzir a evolução que se desenvolve através da amizade entre os dois personagens a um mito de "white savior", o herói branco que salva o negro. Até porque o filme não trata de uma salvação. Com efeito, ninguém salva ninguém: mas bem, aprendem um com o outro na busca por se entenderem no mundo, face a deslocamentos subjetivos e sociossimbólicos que suscitam estranhamento em ângulos invertidos. A dimensão social do filme tem mais camadas que se intercalam e se desdobram, entre classe, raça, educação, capital cultural, orientação sexual, etc.
Os roteiristas Nick Vallelonga e Brian Curry mereceram melhor roteiro original pelo diálogo arrepiante no clímax do filme, quando as máscaras caem e as verdades são postas para fora. É nítido que os personagens passam por um profundo processo de transformação, através da empatia, e da compreensão, ainda que parcial, do lugar do outro, e nesse sentido os privilégios de um imigrante branco da classe trabalhadora não são nivelados no mesmo patamar que os de um homem negro, ainda que rico e sofisticado. Apesar da ignorância e da conduta desalinhada do carcamano, o racismo é a adversidade que atravessa todo o fulcro da trama. Nem mesmo o dinheiro e o porte elegante do músico bastavam para que ele pudesse frequentar o restaurante onde ele seria a atração principal no encerramento da turnê no Alabama. Mas é precisamente desta recusa que decorre a linha de fuga, onde tudo termina em jazz.
* Marina Costin Fuser é doutora em Estudos de Gênero e Cinema na Universidade de Sussex com doutorado-sanduíche na UC Berkeley, é ativista e pesquisadora feminista e LGBT há mais de dez anos, contribuindo com artigos e charlas relacionados ao tema dentro e fora da academia. Publicou o livro Palavras que dançam à beira de um abismo: Mulher na dramaturgia de Hilda Hilst.