No muro do Sacré-Coeur com Tavito

Em sincronia perfeita entre letra e música, a melodia se desenvolve a partir de uma introdução notável, dentro de um clima que lembra sempre, aqui e acolá, o som do famoso quarteto

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Várias canções falam sobre os Beatles e seu tempo. Nenhuma delas, no entanto, foi tão certeira quanto “Rua Ramalhete”, do mineiro Luís Otávio de Melo Carvalho, conhecido por todos como Tavito, em parceria com Ney Azambuja. Em sincronia perfeita entre letra e música, a melodia se desenvolve a partir de uma introdução notável, dentro de um clima que lembra sempre, aqui e acolá, o som do famoso quarteto, com laivos de sofisticação muito superiores à propalada beatlemania, que me perdoem os fãs. A letra, repleta de imagens aparentemente simples, é conduzida pela mesma matéria a que foram relegados os Beatles, a saudade, ou seja, a rua e seus ramalhetes, o olhar de rapina sobre as moças do colégio de freiras, os bailes e as canções. Tudo, enfim, saudades. E é no dia em que Tavito vira saudades que me voltam os relatos de amigos e conhecidos seus. Nunca o conheci pessoalmente, mas tudo o que vinha da sua direção era uma brisa boa, de bom humor, talento e eterna disposição pra vida. O primeiro de todos é o cantor e compositor santista Sonekka Lazarini, amigo responsável por anunciar a sua inesperada e indesejada morte. “Você precisa conhecer o Tavito, vocês iam se dar bem, ele é um cara excepcional” e por ai afora. Como que para corroborar a doçura do compositor, vem outro colega e amigo, Luiz Cláudio de Santos, conhecido por ser capaz de tirar de ouvido qualquer canção, contar do seu encontro com o Tavito: “Cara, ele me ensinou a harmonia da “Rua Ramalhete” inteira, acorde por acorde. Desde então, fico a imaginar qual outro compositor do seu porte que teria essa generosidade. E lembrar Tavito é, de alguma forma, voltar no tempo da saudade, no tempo da lendária banda Som Imaginário, do qual fez parte; os três álbuns inesquecíveis que gravaram; o fabuloso disco “Milagre dos Peixes ao Vivo”. Tavito era, enfim, de um outro tempo que não cabia no calendário. Foi um daqueles personagens que inventaram a história da nossa música contemporânea e andava por aí como se não soubesse de nada disso. Ou não ligasse, o que era mais provável. Acompanhava de longe suas postagens nas redes sociais. Bem-humorado, ácido, esculhambava políticos sem distinção e vibrava mesmo com a música e os amigos. No dia do fatídico incêndio no centro de treinamento do Flamengo postou um vídeo comovente em homenagem aos meninos mortos, uma versão triste e pungente do hino do clube, uma bela composição de Lamartine Babo. No dia do seu último aniversário, em janeiro, ele agradeceu pelo Facebook a todos pelos parabéns e acrescentou, de maneira premonitória: “Torna-se necessário recalcular minha idade por meios outros que não os do calendário. Não sei quantos anos tenho. São muitos, compactados pelas experiências boas e más que acumulei nesse punhado visível. Hoje só posso dizer que não estou mais suportando como antes as grandes perdas e as imensas tragédias dessa vida. Tragédias criminosas e recorrentes em um pobre país aos pedaços - como a de Brumadinho, nas minhas queridas Minas Gerais. Perdão a todos, evoé”, encerrou.