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A jovem cineasta Eliza Capai falou à Fórum, em abril de 2017, no momento em que lançava o documentário “#Resistência”, sobre as ocupações culturais de estudantes que começavam a ocorrer em todo o Brasil, durante o processo de impeachment da então presidenta Dilma Rousseff.
Quase dois anos depois, ela volta a conversar com a revista, desta vez no tórrido verão brasileiro, em que escândalos sucessivos inauguram o governo de Jair Bolsonaro. Neste momento, ela prepara agasalhos para enfrentar o inverno europeu, ainda este mês, onde vai apresentar seu próximo filme “Espero tua (Re)volta”, no Festival de Cinema de Berlim, um dos mais prestigiados do mundo.
Quase uma continuação, “Espero tua (Re)volta”, ao contrário do primeiro que foi feito totalmente às próprias custas, conta com a coprodução da Globo Filmes e vai passar na GloboNews, furando a bolha que a acolheu e festejou.
O documentário é um mergulho no movimento estudantil, tendo como “arco da narrativa”, como ela mesma coloca, as marchas de 2013 até a vitória do presidente Jair Bolsonaro em 2018, fato que ela confessa que jamais poderia imaginar como desfecho.
Inspirado pela linguagem do próprio movimento, o filme é conduzido pela locução de três estudantes, representantes de eixos centrais da luta, que disputam a narrativa, explicitando conflitos do movimento e evidenciando sua complexidade.
Eloquente e reflexiva, Eliza conclui raciocínios e elabora outros com muita fluidez, enquanto dá as respostas, que acabam por perfazer um compêndio da nossa história recente. Nesta semana, além de contar para a Fórum todos os detalhes de “Espero tua (Re)volta”, ela ainda lançou o trailer do filme nas redes sociais. Veja abaixo:
Fórum – O que mudou, tanto no seu cinema quanto no Brasil, do filme “#Resistência”, pra cá?
Eliza Capai – Nossa, do tempo de terminar o “Resistência” até agora eu estou justamente tentando entender isso. Os dois filmes se iniciam juntos, no momento em que eu entrei na ocupação da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), quando os estudantes estavam lá pedindo a CPI da merenda, e nós saímos de lá, eu e a Mariana Genescá, que é a produtora executiva – naquele momento a gente tinha acabado de se conhecer e acabamos nos tornando grandes parceiras – sabendo que a gente precisava fazer um filme sobre aquela geração. Sobre a forma como eles se organizavam, como aqueles meninos, vindos em geral de escolas públicas sucateadas, vindos de periferias ou de regiões de gueto, conseguiam, apesar do como é formado o nosso sistema de ensino, chegar naquele grau de organização e consciência política.
Fórum – Aí, surgiu o “Resistência”?
Eliza Capai – Isso. No meio desse caminho, surgiu o “Resistência” que é praticamente um desabafo, A ocupação da Alesp acontece entre a votação do impeachment da Dilma na Câmara e no Senado. Ele é quase uma terapia que surge no calor do momento, eu narro em primeira pessoa, a partir da minha vivência, como o impeachment me afetava enquanto mulher, de esquerda. Já o “Espero tua (Re)volta” tem mais tempo de processamento. Ele tem a coprodução da Globo Filmes, irá ao ar na GloboNews e pra gente isso é muito forte e importante, porque é conversar com um público mais amplo. Isso abriu um outro momento.
Fórum – Como foi a participação da Globo?
Eliza Capai – A parceria com a Globo nos abriu a possibilidade de uso do arquivo da emissora. E o filme que a gente tinha acordado a princípio partia dos personagens que estavam ali na Alesp, mas frente à possibilidade de usar o arquivo a gente resolveu dar alguns passos atrás e tentar entender como aqueles estudantes tinham chegado ali, de onde eles tinham vindo, quais eram as lutas anteriores. Então nós temos dois momentos muito fortes nessa pesquisa. Um foi quando eu e o Bruno Miranda, que é o cinegrafista que gravou muito comigo, fomos pro congresso da UNE e entrevistamos vários jovens de todo o Brasil que tinham diferentes bandeiras sobre o que estava acontecendo no movimento estudantil naquele momento. Foi ali que ficou claro que essa geração é profundamente marcada pelas marchas de junho de 2013, pois foi o primeiro momento que alguns deles foram pra rua e é o primeiro momento que outros deles, mais jovens, assistem um movimento de rua nessas proporções e se sentem tocados por isso.
[caption id="attachment_165726" align="alignnone" width="300"] Foto: Facebook[/caption]
Fórum – Como foi essa caça às imagens?
Eliza Capai – Em paralelo com isso, eu comecei a assistir tudo o que já tinha sido publicado sobre isso e fui atrás dos documentaristas que haviam gravado dentro das ocupações de 2015 contra a reorganização das escolas proposta pelo governo de Geraldo Alckmin. E foi muito interessante, porque eu não entrei pessoalmente nas ocupações, mas através do material de tantos documentaristas que acompanharam aquele momento, eu comecei a ter pontos de vista diferentes do que cada um notava ali de dentro. E daí, parte o filme, que tem como arco narrativo de 2013 até hoje, e segue entendendo quais são as questões colocadas, que são as de gênero, feminismo, a da disputa entre autonomistas e entidades estudantis, com ou sem partido.
Fórum – Durante as filmagens de “Resistência” você atuou como uma espectadora privilegiada, quase como uma protagonista. Em “Espero tua (Re)volta” acontece o mesmo?
Eliza Capai – Não. Neste filme temos três narradores, a Marcela Jesus, a Nayara de Souza e o Lucas Koka Penteado, que tem visões e vivências diferentes do movimento estudantil e a ideia do filme é justamente deixar que isso vá para um público maior sem tentar simplificar o que significa aqueles meninos estarem indo pras ruas. Não estão todos indo por um mesmo motivo, não é a mesma causa e nem necessariamente são os mesmos objetivos. A disputa de narrativa entre os três vem pra dar a profundidade que o movimento tem. Dessa vez eu não sou a narradora, a protagonista, mas sim quem observa e tenta entender quais são as diversas vozes representadas por essas três vozes da narrativa.
Fórum – Mas o que ficou de pessoal nisso, se é que ficou algo?
Eliza Capai – Claro que enquanto eu fazia, me perguntava porque tinha ficado tão curiosa sobre a temática, enquanto eu fazia entendia a minha própria história. Coisa que não está no filme, mas eu compartilho com vocês agora. Eu nasci na ditadura, eu cresci com as narrativas dos meus pais que participaram de movimentos estudantis, inclusive de movimentos que se conflitavam entre si. E eu cresci com eles contando dessas disputas que havia entre as duas vertentes que eles faziam parte. Meu pai foi preso político, torturado, exilado e isso foi parte da minha formação. Com o fim da ditadura, no início da nossa era democrática, eu e alguns colegas da escola pública que eu estudava fundamos o primeiro grêmio, lá em Vitória. E aquilo foi muito marcante. Tanto quanto quando eu fui pro segundo grau pra uma escola privada em que a gente era proibido de fazer grêmio estudantil, numa clara lembrança da nossa ditadura militar. Naquele momento, eu não tinha muita consciência do que isso significava. Então, voltar pra esses temas nesse novo momento de Brasil em que esse fantasma que nunca morreu da fato reaparece com essa força, pra mim tem sido muito importante pra entender o passado, o presente e pensar o futuro. O filme “Espero tua (Re)volta” tem o desejo de entender essa curva que começa em 2013 e chega na eleição do Bolsonaro. Obviamente a ideia inicial não era incluir essa eleição, porque isso era impensável por mim quando eu comecei esse filme, que ele seria eleito e, ao mesmo tempo, a gente sentia que o filme não ficava pronto, como se ele tivesse já intuindo que esse seria o desfecho narrativo.
Fórum – Você teve investimento público para a realização do filme?
Eliza Capai – O filme é feito graças às políticas públicas. É a primeira vez que tenho verba, que posso me dedicar por inteiro a fazer o filme. Das outras vezes, eu precisava trabalhar e filmava em tempo livre, o que é muito cansativo. Dessa vez, mesmo que o filme tenha ficado muito maior do que o seu orçamento, foi possível graças à essas políticas que foram pensadas especialmente na última década e meia. É claro que a gente teme pelo futuro dessas políticas. Se as novas políticas vão querer continuar mostrando a diversidade do país. Se você conta quantos filmes brasileiros participavam nesses festivais internacionais no começo dos anos 2000 e quantos participam agora, é uma prova muito forte desse investimento em cultura, no áudio visual e na potência que se tem quando se criam políticas públicas que incentivam esse tipo de coisa. Vários filmes sobre questões sociais brasileiras estão participando em Berlim neste ano como registro, denúncia, documento tanto pro futuro quanto pra quem não está vivenciando essa realidade. E isso é imprescindível pra qualquer democracia de qualquer país que quer se pensar, repensar e melhorar.
[caption id="attachment_165727" align="alignnone" width="300"] Foto: Facebook[/caption]
Fórum – E quais são as expectativas para o Festival de Berlim?
Eliza Capai – Por um lado, eu me sinto muito feliz de estar levando esse filme pra Berlim, pra mostrar esses pontos de vista desse momento dessa molecada que ocupou as escolas, que é o nosso futuro e como eles entendem esse Brasil de hoje. É um filme que questiona sobre o futuro e é muito importante, quando ele for lançado no Brasil, que chegue com o aval de um festival desse tamanho. Não é simples, neste momento em que o Brasil vive, lançar um filme desses. Num momento em que os movimentos sociais e as esquerdas são criminalizados pelo próprio governo. Lançar primeiro em Berlim nos dá um respaldo de pessoas que estão fora dessa guerra e que podem atestar sobre a qualidade do filme e nos dá visibilidade pra começar a discutir o tema. Por outro lado, a gente vai lançar dentro da mostra Geração 14+, que é uma mostra cujo júri tem de 14 a 18 anos, ou seja, são secundaristas alemães que vão assistir em primeira mão. E isto é muito especial pra um filme que foi pensado pra um público jovem, secundarista, que fica apenas três anos na escola e, por conta dessa rapidez, a documentação desaparece. E o filme quer contar aos novos secundaristas como é que foi. Quais foram as coisas maneiras, quais foram as difíceis, onde teve trauma, onde teve aprendizado. É pra dividir esse conhecimento, pra que as próximas revoltas possam partir de um novo lugar de reflexão e de prática.
Fórum – Um dos pontos cruciais no movimento estudantil atualmente é a questão de gênero. Como o filme aborda isso?
Eliza Capai – Uma questão muito recorrente no movimento estudantil e também nos movimentos sociais é a da representatividade. E a escolha dos personagens tem muito a ver com isso. A gente tem a Marcela Jesus, que é uma mulher negra, o Koka, que é um homem negro, a Nayara, que é branca e é bissexual e ela chama a atenção pras questões LGBTs na luta estudantil, com muita leveza e com muito tesão sobre isso. Eu acho que é o momento de se pensar e dar voz a essas representatividades todas. Por isso a escolha por esses protagonistas – eles são os narradores do filme – puxando cada um por seu lado.