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A poucos dias da decretação da intervenção militar no Rio de Janeiro, o cantor e compositor Gabriel, o Pensador fez uma homenagem comovente às crianças vítimas da violência no programa Fantástico, da Rede Globo. Acompanhado apenas pelo toque do surdo de João da Serrinha – o toque do surdo solitário é a homenagem suprema do sambista ao luto –, Gabriel relembra as várias crianças mortas por balas perdidas ou, simplesmente, em decorrência da violência pura e simples.
Apesar de ir, como sempre, no limite do que permite a emissora, o compositor consegue, aqui e acolá, além da comoção geral da consequência, esbarrar na causa em temas como a corrupção e os políticos.
Gabriel é um mestre do ofício. Suas rimas são certeiras, corretas e, muitas vezes, comoventes. De origem de classe média alta, consegue tocar de forma direta em temas que são próprios dos excluídos e é, vez ou outra, criticado por isso. A sua voz é sempre bem-vinda. Seu vídeo pode ser visto aqui.
No olho do furacão
Mas, em uma busca um pouco mais apurada, aparecem os artistas que vivem no meio do pesadelo. Os rappers das favelas e guetos, artistas com reconhecimento quase zero da grande imprensa, mas que se espalham em canções, rimas, manifestos, alguns com audiência surpreendente nas redes, apesar de passar batido nos grandes meios.
Ao cantar de maneira quase instantânea, do miolo da parte de dentro do furacão, funcionam como repórteres do dia a dia, da convivência diária com a criminalidade e a violência militar/policial, duas faces de uma mesma moeda repleta de sofrimento, medo e falta de perspectiva.
Intervencionistas
Muitos desses artistas que pululam nas redes sociais e Youtube tecem loas à intervenção e ainda acham pouco. Pedem mais sangue e extermínio, querem que o golpe militar de 64 se repita à enésima potência. A coisa se passa em uma quase intranet, onde pancadões e rappers se manifestam sem papas na língua nem medo. Da mesma maneira que tratam do sexo, gritam também pelo sangue de forma explícita.
Do outro lado da trincheira, em um formato tão ou mais desafeto aà organizações e militâncias quanto os ‘haters’, funcionam os que questionam as causas. Com discurso mais elaborado e comedido, alertam para o óbvio num teatro de horrores onde ninguém parece se entender mais.
Contra a Parede
Um dos exemplos mais pungentes é a do vídeo clipe do grupo Contra a Parede “Intervenção Militar Vs Morador”.
No vídeo, um militar e um morador, os dois negros, se cruzam em uma viela, numa abordagem. Sozinhos, os dois travam um diálogo em que a situação toda se desnuda, a partir das diferenças e, sobretudo, das semelhanças. A troca de acusações, do militar para o morador, termina com a explosão do morador: “Você e os bandidos, que eu tenho com isso?”, para encerrar, diante do soldado, de cabeça baixa: “Te usa sem medo um império governo que nem sabe quem é você! É só um boneco num jogo aberto na linha de frente esperando morrer!”.
O vídeo encerra com o morador seguindo o seu caminho diante do olhar perturbado e perplexo do soldado. A letra de Caico Zulu, rapper e escritor que faz o papel do morador, partiu de uma ideia do produtor do vídeo, Wanderson Chan, do grupo Contra a Parede. Chan contou com exclusividade à Fórum que o vídeo foi produzido a partir de um projeto com os moradores do município de Casimiro de Abreu, a 140 quilômetros do Rio de Janeiro.
“A gente tentou dizer no clipe que o problema não está no morador e nem na polícia. O problema é bem maior que isso. Essas duas partes sempre entram em confronto e nada se resolve. No vídeo, eles tiveram a oportunidade de dialogar, coisa que não acontece de fato. Se pudessem se ouvir, eles iam perceber que o problema não está ali, não está porque um é favelado nem porque o outro é policial. A nossa intenção não foi política, mas sim a de provocar essa reflexão”, disse.
A pureza em acreditar que o diálogo tem o poder de resolver problemas seculares pode parecer ingênua, mas foi ela quem permitiu que a questão tenha sido colocada para um grande número de pessoas desta maneira contundente e direta. Na vida real, nem o soldado abaixaria a cabeça e nem o morador passaria impune ao ‘desrespeito à autoridade’.
Mesmo assim, a vida real, ou o que mais se aproxima dela, é esta, contada pelos rappers e artistas das localidades mais atingidas.
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