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Fez 60 anos nesta terça-feira (11) que João Gilberto gravou a canção “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. A unanimidade em torno do disco é tão avassaladora quanto a estranheza que ele causou quando foi lançado, um ano depois. A coisa foi a tal ponto que o divulgador da EMI-Odeon, diz a lenda, teria dito à sua equipe: “Vocês não acreditam na merda que o Rio mandou pra gente”.
O fato é que, 60 anos depois, quase não se encontra quem negue que a “merda”, gostem ou não, mudou radicalmente os rumos da música brasileira e, de certa forma, também influenciou muita gente ao redor do mundo.
Mas o que, afinal, a pequena gravação de apenas um minuto e 59 segundos tem de tão grandiosa assim? A resposta, assim como a celeuma que causa até hoje é, ao mesmo tempo, simples e um tanto complicada.
Tudo na canção “Chega de Saudade” é, de fato, se for levado em consideração o que se ouvia no Brasil à época, bastante estranho mesmo. Ao olhar de trás pra frente é fácil perceber que havia uma nítida transição nas rádios do país. Ao mesmo em que se ouvia a moderna “Ouça”, com a cantora Maysa, ainda explodia nas paradas coisas como “Escultura”, com Nélson Gonçalves e a tonitruante voz de Carlos Galhardo para a delicada “Fascinação”.
E é neste cenário que explode timidamente nas rádios um sujeito cantando quase sussurrado, com uma batida de violão que, apesar de emular o samba, não era exatamente samba, mas sim uma alteração do tempo forte, com acentos em contratempo, algo que ficou popularizado como síncope. Ou, simplificando, a famosa batida da Bossa Nova.
A melodia, carregada por um desencadeamento harmônico absolutamente novo, escondia uma estrutura musical riquíssima em formato de choro. As notas do então quase estreante Tom Jobim, em sua primeira parte em tom menor, levavam com elas, em estreita intimidade, uma letra coloquial, quase um bate papo de namorados, uma cantada elaborada repleta de versos ricos, livres e sonoros:
Vai minha tristeza
E diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Por que eu não posso mais sofrer
Chega de saudade
A realidade
É que sem ela não há paz
Não há beleza
É só tristeza
E a melancolia
Que não sai de mim
Não sai de mim, não sai
Com um efeito tão surpreendente quanto genial, a hipótese da volta da musa faz a melodia crescer e se projetar numa linda modulação para maior:
Mas se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos
Que eu darei na sua boca
A canção, como se não bastassem todas as surpresas anteriores, ainda se vale de gestos (como se fossem possíveis) e demonstrações de afeto no seu desfecho, em irresistíveis acenos de carinho que envolvem o ouvinte em sua melodia circular.
Dentro dos meus braços
Os abraços
Hão de ser milhões de abraços
Apertado assim
Colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos
E carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio
De você viver sem mim
Não quero mais esse negócio
De você viver sem mim
Não há um medalhão da nossa música que não descreva em detalhes onde estava, o que fazia e como reagiu à primeira audição de “Chega de Saudade”. Toda a geração de ouro pós-Bossa Nova não se furta a dizer e repetir a cântaros o tanto que a interpretação de João para a composição de Tom e Vinícius foram definitivos para toda a obra que fizeram.
E olha que se trata aqui de gente como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Edu Lobo e tantos outros mais. Nunca mais, nem antes e nem depois, um fonograma foi tão importante para a nossa música quanto a versão de João Gilberto para “Chega de Saudade”.
Apenas duas gravações entraram em absolutamente todas as listas de melhores do século XX elaboradas por jornalistas, especialistas e críticos: “Carinhoso”, com Orlando Silva e “Chega de Saudade”, com João Gilberto.
“Chega de Saudade” não era inédita. Havia sido gravada por Elizeth Cardoso em seu emblemático disco “Canção do Amor Demais”, lançada em maio de 1968, com o próprio João ao violão, já com a sua inconfundível batida. A gravação de João, no entanto, por tudo o que carrega de novo e transformador, se tornou definitiva.
A gravação é considerada até hoje o marco zero da Bossa Nova, gênero que carregou o Brasil por todo o mundo. A trilha de um país que entrava na modernidade com seu futebol multicultural, a arquitetura de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa e, é claro, a música de João, Tom e Vinícius.