Escrito en
CULTURA
el
A série espanhola “A Casa de Papel” é daquelas coisas que o espectador não sossega enquanto não chega ao final. E, o que é pior, fica ansioso esperando a próxima temporada. Uma vez assistida, no entanto, fica a pergunta incômoda no ar: Mas, afinal, por que um thriller policial a princípio tão parecido com vários outros deixa a todos os que assistem tão confusos e tocados?
Críticas a favor e contra explodem por todas as publicações. Desde gente terrivelmente incomodada com o que seria uma “enxurrada de lugares comuns” até outras que descobrem maravilhas em sua narrativa aqui e acolá. Indiferente mesmo ninguém fica.
Atenção - Daqui pra frente o texto pode conter spoilers.
[caption id="attachment_126704" align="alignnone" width="300"] Casa de Papel. Foto: Divulgação[/caption]
A série trata de um assalto à casa da moeda na Espanha. Dois personagens chave se relacionam e ao mesmo tempo, por um efeito magistral de narrativa e tecnologia, se enfrentam.
São eles o Professor, codinome do líder do bando e idealizador de um golpe tramado por anos que, a princípio, teria que ser perfeito. O outro personagem é a inspetora Raquel, negociadora experiente que assume o comando da operação.
Os dois conversam todo o tempo, cada um deles através da sua própria e enorme parafernália eletrônica. Ao mesmo tempo, os dois também se encontram sem saber quem são em um bar próximo do local do crime e, é claro, têm um caso.
[caption id="attachment_126705" align="alignnone" width="300"] O Professor e Raquel. Foto: Divulgação[/caption]
O professor montou a sua equipe a dedo, usando todos os expedientes de seleção de uma grande corporação. Cada um dos participantes é especializado em alguma área e terá um papel bem definido no assalto. Um assalto que, na verdade, não é feito nos moldes tradicionais. O professor e sua gangue não roubarão nada. Eles vão simplesmente imprimir o dinheiro no próprio local, a Casa da Moeda, para carregar depois através de um túnel já pré-construído.
A sequência inicial da formação da equipe do professor, as entrevistas e o treinamento levaram Fernando Mantovani, o diretor geral da Robert Half, empresa pioneira em serviços de recrutamento especializado, escrever um interessante artigo com enfoque corporativo sobre o assunto que pode ser lido aqui.
[caption id="attachment_126706" align="alignnone" width="300"] Os assaltantes cantam Bella Ciao. Foto: Divulgação[/caption]
A equipe é uma amostragem significativa de parte da sociedade contemporânea. A anti-heroína e narradora da série, a linda Úrsula Corberó, que faz o papel de Tóquio (todos os assaltantes usam nomes de grandes cidades do mundo), é uma outsider e predadora sexual, que tem um caso com Miguel Herrán, ator que interpreta o Rio. O caso dos dois é considerado uma falha, pois envolve emoção onde todos deveriam estar concentrados e atentos.
E os erros, previsíveis e de fato previstos pelo professor, ocorrem derivados de fragilidades humanas, que ocorrem à mancheia, sobretudo em um ambiente de tensão. Tensão esta que é amplificada pela quantidade enorme de reféns, que chegam também com os seus problemas, paixões e envolvimentos.
[caption id="attachment_126707" align="alignnone" width="300"] Os assaltantes. Foto: Divulgação[/caption]
As várias etnias, traços de caráter, inteligências emocionais, distúrbios físicos e mentais entre uma variedade enorme de traços humanos desfila sobre a trama, que confunde o espectador que fica entre o extremo tédio do tempo que não passa dentro da Casa da Moeda e a corda esticada da enorme caçada policial. Entre os dois cenários, o romance do Professor com a Inspetora. Sobre tudo e todos, a mídia, manipulada com maestria pelos dois lados e, é óbvio, manipulando a opinião pública.
Diante dessa barafunda humana, o espectador começa a se dar conta que o bem e o mal se confunde em “Casa de Papel”. Os bandidos não são tão bandidos e muito menos os mocinhos são tão bons assim, a começar pelo pusilânime diretor da Casa da Moeda, que engravidou a sua secretária – e fica sabendo disso no dia do assalto – e passa a ter um comportamento repulsivo tanto em relação à amante quanto ao assalto.
As fragilidades humanas e o sistema desastroso, onde imprimir papel sem lastro é um crime cometido tanto pelos notórios bandidos da série quanto pelo próprio Estado, bem como o roubo do tempo são aprofundados no excelente artigo de Wilson Ferreira nesta própria Fórum.
A mesmo tempo em que se desenvolve a trama, dois túneis estão sendo construídos. Um para confundir a polícia e outro verdadeiro, ligado a um externo já preparado anos antes pelo professor. Este tem como porta de saída a grossa parede de metal de um cofre e outra camada espessa de concreto armado. No momento em que eles conseguem romper essas duas barreiras, há uma comemoração enorme entre os assaltantes, que curiosamente cantam juntos a emblemática canção “Bella Ciao”.
Esta canção foi usada pela resistência italiana ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial e é recorrente no filme. Conta a história do partigiano (guerrilheiro) que se despede da mulher amada, pois os invasores fascistas estão chegando e ele pode vir a morrer na batalha. Se for morto, pede que a amada coloque uma flor ao lado de sua sepultura. Quando os viajantes perguntarem, pede que diga que aquela é a flor do partigiano morto pela liberdade.
[caption id="attachment_126706" align="alignnone" width="402"] Os assaltantes cantam Bella Ciao. Foto: Divulgação[/caption]
Os signos invertidos de A Casa de Papel” não param em momento algum. Não há indulgência nem tampouco certo e errado. A série é eletrizante a partir de seu roteiro, repleto de contradições, controvérsias, atitudes nobres e repulsivas, muitas vezes ao mesmo tempo e pelas mesmas pessoas, assim como todos nós, reféns das circunstâncias.
No final das contas não sabemos se torcemos pelos bons ou pelos maus e, pior ainda, não conseguimos identificar uns dos outros. E ficamos entre querer que a paz se restabeleça ou que todos se explodam de uma vez.