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Por Manoel Herzog
Diz-se que os gatos se nutrem de energia negativa. Esta manhã, no funeral do meu amigo, incomodado com um culto improvisado por membros da IURD antes de se fechar o esquife (meu amigo devia estar odiando) saí com minha amiga num passeio pelo cemitério contíguo ao velório. Centenas de gatos magros e sujos vagabundeavam por ali, nutrindo-se da energia que ali devia abundar. De toda sorte, atado por um laço de solidariedade à mão dela, preferi filosofar que uma história de amor só se consolida quando o casal passeia junto num cemitério.
Meu gato preto fugiu, preferiu a liberdade ao cárcere sombrio que é meu apartamento. A essa desgraça sucedeu uma série de perdas (nem um pouco bem aceitas por mim) que culminou com a morte do amigo cujo enterro eu prestigiava. Talvez estivesse triste pra mim e pras pessoas presentes, mas a expressão do meu amigo, ora cadáver, era serena. Mais expressiva que todas as que vi nos últimos três anos de sua agonia. Ante piadas ou notícias tristes, ou leituras de poemas, sua reação era sempre uma nulidade enigmática. Guardava a chave, no cofre do pensamento, sua impressão sobre tudo. Não podia se comunicar, a doença lhe havia tirado todos os movimentos.
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Meu amigo era um crítico famoso. Fui um dos primeiros a saber de sua morte, não quis dar publicidade. Meia hora depois as redes sociais fervilhando de homenagens póstumas, e eu calado. O jornalista me liga, pedindo uma declaração de escritor local sobre a perda do grande crítico, dei uma desculpa e silêncio. A noite que antecedeu a notícia da morte, às seis da manhã, foi um Getsêmani. Eu estava em Porto, nada Alegre. Sofri miseravelmente minhas perdas, inclusive a do gato preto, e confesso que não fui muito digno no sofrimento. Às seis, quando ainda não dormia, veio a notícia da morte do meu amigo. Às sete uma mensagem via WhatsApp, do porteiro do prédio, que havia capturado o gato preto fujão. Voltei de noite.
Minha amiga me esperava de branco, um jantar amoroso, a casa incensada, flores no vaso. Demos um abraço muito demorado, comemos e nos amamos a noite inteira. Pela manhã ela me acompanhou ao funeral.
Retomo o ponto inicial: o culto dos membros da Universal, meu amigo com a mesma expressão neutra, que inclusive manteve ao me ver entrar no velório. Fez um longo estágio para ser um cadáver, agora estava livre, sua alma grande e culta flanava alhures, nas altas rodas literárias talvez, deixou ali no corpo inerte aquele sorriso sereno.
Cansados do longo combate do amor, havíamos acordado em cima da hora, de modo que chegamos em jejum. Do enterro, convidei minha amiga pra um café na padaria, nosso ritual das manhãs. E aqui a primeira revelação do dia:
Um bêbado engatava aquela que devia ser a décima cerveja da manhã. Brincou comigo por eu pedir uma média, fui educado, o que o fez pensar que ia esticar a conversa. Deixei-o falando só, no meu característico mau humor. Insistiu com outros gracejos e acabou desistindo.
Gosto de ver minha amiga comer pão com manteiga na chapa. Esta visão sentimental me fez dirigir uma despedida amigável pro bêbado. Ele parou, solene, e proferiu a frase mais inusitada e pertinente do mundo:
"Desculpe a minha inconveniência. Na vida, ou se é um autor publicado, ou se é esquizofrênico. E eu sou esquizofrênico."
"O senhor me conhece?"
"Não."
Vi que falava a um louco, e que os loucos encontram razões estranhas nas suas falas.
Aconchegado no seio de minha amiga rimos daquela revelação. Estávamos na fila do caixa. Segunda revelação: uma senhorinha de cabelo azulado nos olhou e disse:
"Como o amor é lindo. São casados há muito tempo?"
"Nos casamos esta noite." - respondi. E rimos todos, inclusive meu amigo Alfredo Monte, agora liberto da limitação de um corpo.
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