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O documentário Resistência, de Eliza Capai, traz à tona um apanhado de episódios recentes da história do Brasil. Seu marco inicial se dá na Ocupação Alesp, realizada pela movimentação política dos secundaristas de escola pública que reivindicavam a investigação do desvio de verba da merenda das escolas públicas de São Paulo.
Por Tatiane Mattos
O documentário Resistência, de Eliza Capai, traz à tona um apanhado de episódios recentes da história do Brasil. Seu marco inicial se dá na Ocupação Alesp, realizada pela movimentação política dos secundaristas de escola pública que reivindicavam a investigação do desvio de verba da merenda das escolas públicas de São Paulo, no mesmo ano em que o Governo do Estado de SP, encabeçado por Geraldo Alckmin (PSDB), ameaçava também fechar algumas escolas, efetuando um remanejamento entre alunos que desconsiderava o diálogo. E a narrativa perpassa outras ocupações (OcupaMinc e Ocupação Funarte) que se deram entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro após o Impeachment da presidenta Dilma Rousseff, considerado por muitas e muitos, e aqui me incluo, como um golpe. Nesse recorte temporal, que se dá também a partir do horror com que acompanhamos a votação do Impeachment da Câmera dos Deputados, que a diretora-narradora nomeia de caricatural - e eu acrescentaria, como o filme evidencia, de uma caricatura grotesca -, foram tantos os episódios que, talvez, cause estranheza e/ou dificuldade de entendimento em que não acompanhou diariamente o processo (ou seria em todos nós?).
No entanto, na sequência de episódios apresentados através do espectro de fluxo de consciência (para utilizar os termos da literatura que me são mais íntimos), com a voz em off de uma narradora que não hesita em revelar o ponto de vista da diretora, para além das imagens, há um chamado à memória com um convite para a reflexão a quem, ainda que vivenciando tais acontecimentos, acabou atropelado pelo bombardeio de informação a que fomos sujeitos enquanto tentávamos, em cada uma dessas ocupações, resistir. E o documentário ganha muita força quando entra, por essa razão, na disputa de narrativa com aquilo que foi construído pela grande mídia brasileira, baseando-se, para tanto, em três eixos principais: estudantes secundaristas, mulheres e artistas.
Sabemos que o que se desenhou nessa grande imprensa de toda a movimentação política que se deu nos momentos imediatamente anteriores e posteriores a saída de Dilma Rousseff foi um intenso esforço de desqualificação dos movimentos. Tais desdobramentos fazem parte do jogo de desarticulação da memória, que implica, entre outras coisas, no processo de não reconhecimento de eventos históricos experienciados, tanto é assim que hoje ainda falamos – pouco - em ditadura militar quando tivemos na história recente no nosso país uma ditadura civil-militar. Nesse sentido, é possível que tomemos um susto (e isso foi o que aconteceu na sala em que assisti, com estudantes de jornalismo de uma universidade portuguesa, mas também é o que aconteceu com grande parte das pessoas que acompanharam em tempo real o que ocorria) quando vemos que há movimentação política entre estudantes secundaristas, que mulheres, ainda que tenhamos pouca representação nas instituições políticas, encabecem movimentos sociais com participação crucial nas instâncias deliberativas e que artistas, de todas as áreas, tenham força o suficiente para fazer com que um ministério, ainda que aos trancos e barrancos, volte à sua formação sob a guarda de um governo reacionário que não infere importância alguma à cultura. Boa parte desse cenário, apesar de parecer nova, já esteve presente nas lutas políticas que se travaram no Brasil.
É evidente que essa sobrepujança do discurso hegemônico não opera apenas na construção da memória, mas também nas entrelinhas daquilo que se escolhe ou não politizar e combater. Para exemplificar, temos que os estudantes que ocuparam a Alesp conseguiram os números de assinatura para abertura da CPI, tamanha a potência da ocupação na época, no entanto, com o descaso da mídia que se abateu logo após a desocupação, a CPI resultou apenas em alguns servidores investigados e todos os políticos envolvidos isentos de suas responsabilidades. Ainda assim, a construção da memória é potente em termos de acionar mecanismos de mobilização às lutas e é nessa seara que Resistência se encontra.
Pulsando na construção de memória, o documentário ganha em força mais uma vez quando opta, claramente, e com uma narradora mulher, por aportar-se principalmente na energia dos secundaristas e das mulheres nessas movimentações. É a partir dessas vozes que se contesta a repressão policial – num jogo de imagens que revela, denunciando, como a violência praticada é inversamente proporcional aos anseios políticos ali presente. Nesse embate, ganha espaço a mulher negra, advogada, que interpela a tropa de choque colocada a serviço da reintegração de posse dos espaços ocupados – todos eles públicos e, portanto, pertencentes aqueles que ali estavam. Nesse mesmo embate, acompanhamos estudantes obrigados pelo braço armado do Estado a deixarem as ocupações. As duas forças se reúnem assim, nesse momento narrativo, contra a força repressiva de um Estado evidentemente violento e que não atende às reinvindicações daqueles que, nessa nova formação governamental imposta a fórceps, serão significativamente ainda mais violentados. Nesse sentido, o filme firma-se no seu intento de disputa de narrativa com o discurso hegemônico construído pelo oligopólio da mídia no Brasil: na contramão do discurso machista também responsável pela retirada da presidenta eleita, agora prospectado através da imagem da bela, recatada e do lar, a mulher na frente das movimentações políticas que contestam o governo de Temer; na contramão do discurso da política retrógrada, jovens que correlacionam forças para exigir novas ordenadas políticas.
Esses episódios ocorridos no último ano e meio são concentrados em 55 minutos de filme, que trazem à tona a memória escamoteada que pode impulsionar novas movimentações. Se tem nos sido difícil escolher o que defender, diante de uma prática política que tenta nos pregar uma rasteira por dia, parece-me mais fácil quando temos acesso a essa memória. O documentário foi capaz de ativar a memória da movimentação – daquilo que é possível através da luta, ainda que sejamos derrotados em algumas batalhas - e, para mim particularmente, encerra-se aí o seu maior êxito, porque nos aciona também os mecanismos de ação diante do que assistimos. Durante a escrita desse texto, soube dos áudios vazados do Temer com representantes do grupo JBS. É necessário movimentar-se sempre contra o que nos vai sendo imposto: ocupar e resistir. Fora Temer. Diretas Já!
Leia aqui entrevista da diretora do documentário Eliza Capai à Fórum.