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Belchior, por alguma daquelas razões inexplicáveis, traduzia o seu tempo melhor do que qualquer outro de sua geração. Suas canções formam uma espécie de hinário de uma época e dos sonhos de quem a viveu. Ouvir Belchior novamente é sempre voltar para um local determinado guardado pelo afeto: “Eu era alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais; Como um galo, quando havia... quando havia galos, noites e quintais”.
Por Julinho Bittencourt
Pra variar, fazia muito calor em Santos naquele verão. Belchior chegou com um terno branco – o paletó de linho branco! – e alguém perguntou: “Você não está com calor com esta roupa?”. Ele respondeu, diante da estranheza geral: “O calor fica de fora da roupa. Está tudo certo”.
Esta foi só a primeira de uma série de frases surpreendente eu ele soltou naquele dia intenso. Não era, nem de longe, uma pessoa qualquer. Falava sobre vários assuntos com precisão, se lembrava de detalhes, dava sua opinião sem ser incisivo. Nunca discordava de forma veemente. Podia ou não estar certo e não dava a mínima para isso. E sorria. Sempre.
Na hora do show, um público enorme já se acotovelava no local. Ele passou pelo meio de todos distribuindo sorrisos, abraços. Subiu ao palco e a mágica se deu. Suas canções estavam (estão) na boca de todos. A cada verso o tempo se renovava, os sonhos eram refeitos. O que era novo jovem, hoje antigo, se reapresentava.
Belchior, por alguma daquelas razões inexplicáveis, traduzia o seu tempo melhor do que qualquer outro de sua geração. Suas canções formam uma espécie de hinário de uma época e dos sonhos de quem a viveu. Ouvir Belchior novamente é sempre voltar para um local determinado guardado pelo afeto: “Eu era alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais; Como um galo, quando havia... quando havia galos, noites e quintais”.
Foi o primeiro (e talvez único) a afrontar John Lennon, pouco antes da morte do Beatle: “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixe que eu decida a minha vida; não preciso que me digam de que lado nasce o sol, porque bate lá meu coração”.
Produzia e se consumia num caso de amor e ódio com os seus próprios ídolos. Provocava Caetano e os tropicalistas logo no seu primeiro sucesso: “Mas trago de cabeça uma canção do rádio Em que um antigo compositor baiano me dizia, tudo é divino, tudo é maravilhoso”.
Muito mais do que reverenciar e idolatrar, Belchior questionava os grandes ícones. Sua inteligência disparava para todos os lados. Dizia que seu maior sonho era mudar o mundo. “Hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude está em casa guardado por Deus contando o vil metal”.
Fazia poesia cantada, à moda de Dylan e Cohen. O que não o impedia de cometer canções maravilhosas, com melodias definitivas. A principal delas, “Mucuripe”, uma das mais belas do cancioneiro brasileiro, veio em parceria com o amigo e conterrâneo Raimundo Fagner. Outro grande momento seu poético e melódico foi “Paralelas”, que ele fez só, na primeira vez que foi ao Rio: “E as paralelas dos pneus n'água das ruas; São duas estradas nuas em que foges do que é teu”.
Belchior teve um final de vida melancólico, atolado em dívidas (que seu empresário jura que as pagaria em três meses se ele voltasse a fazer shows, diante da procura, tamanha a popularidade do artista) e desaparecido.
Morreu com frio, numa pequena cidade do sul, do lado oposto da sua ensolarada Sobral. A mesma Sobral que parou para homenageá-lo.
Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, o Belchior do povo brasileiro, se foi. Já guardava silêncio há anos. Mas o Brasil jamais esqueceu de suas canções.