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As cooperativas de teatro e dança agrupam um imenso contingente de artistas de São Paulo que não têm assessoria jurídica, não lidam com a burocracia. Criminalizar as cooperativas, como faz a reportagem da Folha, é arrancá-los do processo e entregar tudo ao mercado
Por Julinho Bittencourt
Em um texto capaz de enrubescer o mais tendencioso dos escribas, já devidamente compartilhado pela blogsfera da direita, o jornalista Rogério Gentile consegue, em uma patada só, inverter legitimidades e criminalizar um processo absolutamente correto e que atravessou diversos governos sem problema algum. Trata-se da reportagem: “Haddad deu R$ 30 milhões a grupos de dança que julgavam a si mesmos”, publicada na Folha de São Paulo de segunda-feira (6), sobre o processo de editais de dança na cidade.
Os tais que “julgam a si mesmos”, conforme diz o título, são duas cooperativas, a Cooperativa Paulista de Dança e a Cooperativa Paulista de Teatro, assim mesmo por extenso, para que não pairem dúvidas. O caro colega se esquece de relevar que a imensa maioria dos artistas, tanto de dança quanto do teatro, são ligados à estas cooperativas, o que é absolutamente legítimo. A Cooperativa Paulista de Teatro, por exemplo, representa 4 mil artistas e cerca de 800 coletivos de artes cênicas, conforme ele mesmo reproduz em seu texto em frase de Rudifran Pompeu, presidente da Cooperativa de Teatro.
É fácil perceber, portanto, que essas cooperativas, que como o próprio nome diz, não têm fins lucrativos, organizam – repito, de maneira absolutamente honesta – um enorme contingente de artistas e consigam vencer com isto, é óbvio, uma grande parte dos editais. Estranho seria se a cooperativa dos ferramenteiros vencesse um edital de dança.
Para que fique mais claro, a coisa funciona assim: A imensa maioria dos artistas não têm CNPJ, empresa montada, assessoria jurídica ou coisa que o valha. Para isso ele recorre à cooperativa. O que está fora das cooperativas, invariavelmente, é o mercado, com seus empresários, grandes grupos etc.
Como explica a ex-secretária de Cultura de São Paulo e funcionária de carreira da prefeitura, Maria do Rosário Ramalho, “a maior parte dos núcleos artísticos e coletivos culturais (assim identificados especialmente nas periferias), cuja produção cultural está voltada à pesquisa, à cultura comunitária e à produção desvinculada dos interesses do mercado, não possui personalidade jurídica, principalmente pelos custos de manutenção de uma organização, difíceis de manter especialmente quando não há trabalho continuado. Por essa razão, é forte na cidade a organização em torno de cooperativas, como a de teatro, a de dança, de música, de circo, todas aptas a fornecerem assessoria jurídica, contábil e notas necessárias à devida prestação de contas, em suas respectivas áreas de atuação”.
Ela diz ainda que “as leis de Fomento ao Teatro e à Dança são voltadas a pessoas jurídicas, limitando a um projeto selecionado por CNPJ. No entanto, a legislação trata de maneira diferente as cooperativas, que não tem restrições ao número de núcleos artísticos vinculados ao seu CNPJ, da mesma maneira que acontece em contratações artísticas feitas pela SMC. Não há nisso nenhuma má-fé ou prejuízo ao erário. Assim, o resultado das escolhas dos inscritos está ligado à sua forma de organização, não a qualquer acordo entre a municipalidade e as cooperativas, que venha a direcionar a seleção”, finaliza.
Posto isto, as cooperativas acabam sendo responsáveis pela imensa maioria das inscrições em editais. Mas, conforme informa Rudifran, é importante notar que mesmo assim, o resultado final não é, nem de longe, compatível com o total de inscritos, apesar de ser relevante, pois, como disse acima, quase toda a categoria está dentro delas. “Inscrevemos mais projetos nos editais do que uma empresa de capital privado com fins lucrativos, e é isso que obviamente resulta num maior número de contemplados da cooperativa. Mas se colocar isso no gráfico proporcional, uma empresa que inscreve um único projeto e é contemplada, ela tem 100 % de aproveitamento, o que não é o caso da cooperativa, pois ela é contemplada com muito menos projetos do que ela tem em seus quadros”, explica.
A despeito disto, Gentili vai mais longe ainda e tenta criminalizar, é claro, o ex-prefeito Fernando Haddad. Conforme diz o título, Haddad não “deu” nada a ninguém. Em processos licitatórios simples, sempre foram escolhidos grupos artísticos que, diga-se de passagem, também viviam às turras com ele próprio durante o seu mandato. Venceram e levaram, pois são organizados, e isso ocorre desde o mandato de José Serra, em 2005.
O objetivo aí, tanto do jornalista e seu jornal, quanto do prefeito João Doria, é simples e recorrente. Acabar com os fomentos, retirar as verbas públicas para a cultura, desidratar de vez o setor público e entregar tudo às grandes corporações, com os seus espetáculos plastificados que tanto agradam ao mercado. Acabar com o teatro experimental, o balé de vanguarda, a alta cultura. Entregar, enfim, o que é público ao privado.
Os artistas organizados, cooperativados, sindicalizados, entrincheirados em seus pequenos grupos que, unidos, se tornam grandes, reagem. E a cultura agradece.
Foto: Cia. Fragmento de Dança/Divulgação