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O líder da banda Língua de Trapo, Laert Sarrumor, conta em artigo bem-humorado como foi não tocar do Festival de Águas Claras, de 1983, e receber cachê e, um ano depois, tocar e não receber
Por Laert Sarrumor
Na primeira edição do Festival de Águas Claras, em 1975, eu morava com minha mãe em Santos, SP, tinha 17 anos e era roqueiro de carteirinha.
Lógico que eu quis muito ir, mas minha mãe embaçou, fez chantagem, não deixou, acabei não indo.
Fiquei muito frustrado.
Como consolação, assisti depois ao show das bandas Jazzco e Terreno Baldio, no auditório da Rádio Clube de Santos, com o Pena Schmidt na mesa de som.
Banda Terreno Baldio
Na segunda edição, em 1981, já com o lance da TV Bandeirantes e tudo, o Premê (Premeditando o Breque) foi convidado e o Língua não.
Nova frustração.
Dá pra imaginar, portanto, o quanto eu fiquei feliz ao receber a notícia de que iríamos participar da edição de 1983, a terceira, que aconteceu nos dias 2, 3, 4 e 5 de junho.
No dia primeiro, quarta-feira, pela manhã, encontrei com o pessoal da banda em frente ao Aeroporto de Congonhas. De lá partimos em ônibus especial para Bauru, junto com o pessoal da Banda Paulistana, Jean Garfunkel, Vidal França e duas organizadoras do festival.
Egberto Gismonti no camarim do festival - Foto Calil Neto
Em Bauru, nos hospedamos em hotel, no centro da cidade, jantamos em restaurante, perto do hotel.
Na quinta, dia 2, íamos sair para Iacanga logo após o café da manhã, mas o mau tempo alterou o programa. Almoçamos no mesmo restaurante da véspera. Ficamos esperando o tempo melhorar no saguão do hotel.
Longe de ficar mal-humorado pelo contratempo, pra mim tudo era festa, fiquei ali, no saguão, curtindo toda aquela movimentação, privando da companhia de vários artistas. A que mais me deixou empolgado foi a do ídolo Raul Seixas, parado ali, ao meu lado, junto com um empresário careca, aguardando também a hora de ir.
Raul Seixas logo depois de seu show no festival - Foto Calil Neto
Às 17h finalmente partimos em ônibus especial, junto com a Banda Paulistana, rumo a Iacanga, por uma estrada alternativa, pois a principal estava interditada.
Ao chegar na fazenda, mais confusão. Não havia como ir do portão até o local do show pois o barro era muito e os veículos ficavam atolados. Até o final da tarde, o transporte dos artistas até o palco foi feito de helicóptero, mas quando chegamos, à noitinha, era impossível decolar, devido a falta de visibilidade.
Frustrado por não ter andado de helicóptero pela primeira vez, fiquei no aguardo dos acontecimentos.
Já era noite cerrada quando recebemos a notícia que seria impossível nossa apresentação no festival.
Desgostosos, nos preparamos para ir embora, porém a ala mais radical da banda levantou a questão: não arredaríamos pé antes de receber o cachê, afinal estávamos ali disponíveis, se não íamos tocar não era por nossa culpa.
Depois de uma breve discussão, ficou decidido que eu iria na companhia de nossa produtora, Marcia Barros, a pé, até a sede da fazenda, onde ficava baseada a produção do festival, para pegar o cheque.
E lá fomos nós, eu e a Marcia, de braços dados, tateando o chão, passo a passo, no meio daquele barro, envoltos pela escuridão.
O caminho até a casa da fazenda era ladeado pelos pastos das vacas. O breu daquela noite sem lua e sem estrelas era tanto que nós não as víamos, só ouvíamos seus mugidos e sentíamos sua respiração.
No meio do caminho, a Marcia estaca e me diz: “Minha lente de contato caiu no chão”. “Deixa, Marcia, você jamais irá achar no meio desse barro, nessa escuridão”, disse a ela, agoniado. Mas ela não me deu ouvidos, se agachou e começou a revolver o barro com as mãos, às cegas. Eu, de pé, ao lado dela, incrédulo com aquilo. De repente, ela grita: “Achei!”. Eu sei que é completamente inacreditável, mas ela tinha achado mesmo!
(A partir desse episódio ela passou a ser chamada de Amassa Barros).
A banda Língua de Trapo
Seguimos confiantes até a sede da fazenda e pegamos o cheque.
De volta a Bauru, nova polêmica.
A produção do festival havia nos prometido transporte aéreo no retorno para São Paulo, mas não seria viável naquela noite, devido ao mau tempo.
Entre pernoitar no hotel ou enfrentar a estrada à noite resolvemos arriscar ir até o aeroporto, junto com um cara da organização do festival, já que a chuva havia passado.
Lá chegando, o aeroporto de Bauru estava às escuras. Na pista, o vulto do Fokker da Tam que havia sido fretado para levar os artistas de volta para São Paulo.
Na porta do aeroporto, o piloto e a tripulação. Após breve conversa, convencemos o piloto, que na verdade não estava com a mínima vontade de dormir em Bauru, a levantar vôo.
Foi uma das maiores emoções da minha vida, parecia cena de filme: de repente vimos as luzes amarelas do aeroporto se acendendo, o piloto e a tripulação se encaminhando para a aeronave, tudo isso só para nós!
E o mais emocionante de tudo: era a primeira vez que eu viajava de avião!
O avião levantou vôo às 21:30h, rumo a São Paulo, tendo como passageiros apenas o Língua de Trapo, nossa produtora e o cara da organização do festival.
Enfrentamos uma turbulência medonha, o negócio sacolejava mais do que carroça em estrada de terra.
O Pituco, colado na poltrona, de mãos dadas com a Marcia Barros, repetia sem parar: “Meu Deus! Meus Deus!” Meus Deus!...”
Eu, com a súbita coragem que só os novatos têm, achei a minha primeira vez muito divertida.
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Em 1984, na quarta edição do festival, que aconteceu em pleno carnaval, o Língua de Trapo foi novamente convidado a participar.
No sábado, dia 3 de março, fui, como da outra vez, até o Aeroporto de Congonhas encontrar com o pessoal da banda para embarcarmos em ônibus especial, com destino a Bauru, junto com o Saulo Laranjeira (Ele mesmo! O Deputado João Plenário, da Praça é Nossa!) e banda e o grupo A Gota Suspensa (que posteriormente mudou o nome para "Metrô").
À tarde, em Bauru, depois de almoçarmos e nos instalarmos no hotel, seguimos para a Fazenda Santa Virgínia, em Iacanga, para nossa apresentação no festival.
O camarim dos artistas era um pequeno circo, armado atrás do palco.
A imagem que tenho desse local é de dois companheiros da banda, que haviam tomado substâncias duvidosas, se comportando de maneira bizarra, “viajando” e falando as piores barbaridades. Bem no clima de um festival de rock.
No final de nossa apresentação, uma tempestade de vento interrompe o festival, ameaçando fazer o palco desabar. As primeiras coisas a irem pro chão foram as colunas de som do equipamento da DJ Sonia Abreu, que animava a galera entre um show e outro.
Depois que a ventania passa, o festival prossegue, com os shows de Hermeto Pascoal, Raul Seixas e Paulo Moura.
Raul, que havia esquecido de levar a guitarra, pediu emprestada a do nosso guitarrista, Sérgio Gama, fato que ele conta até hoje, com o peito estufado.
Depois do show, retornamos para o hotel, em Bauru, onde pernoitamos, regressando de busão especial para São Paulo, na manhã seguinte, sem maiores percalços.
O cachê desse show nós nunca chegamos a receber.
Em 83, não tocamos e recebemos. Em 84, tocamos e não recebemos.
No final, ficou uma coisa pela outra.