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Por que Chico Buarque, Caetano e Gil, Djavan, Edu Lobo, Milton Nascimento entre muitos outros não gastam um tantinho do tempo, em forma de show, em um grande evento: “Em gratidão a João”?
Por Julinho Bittencourt
João Gilberto, o maior artista popular brasileiro de todos os tempos, está, de acordo com a sua filha Bebel Gilberto, em estado próximo da miserabilidade. Quando João fez 85 anos lembrei por aqui que, fosse ele de um país desenvolvido e propulsor da indústria cultural e, muito provavelmente, teria reconhecida uma relevância tão grande quanto os Beatles para o Reino Unido, Frank Sinatra e Ray Charles para aos EUA.
João, no entanto, é brasileiro. Viveu às turras com gravadoras, fez contratos canhestros e desvantajosos, sofreu, como sofrem todos os músicos brasileiros, as consequências das trapalhadas dos seus royaltes, direitos conexos (aquele da execução) e, no seu caso, aqui e acolá, de direitos autorais.
Lembrei também que com a sua pequena invenção, um tanto orgânica, onde voz e violão caminham por vários sentidos, conseguiu traduzir cinco séculos de formação da nossa cultura. Ali, naquela estrutura básica, onde ritmo, melodia e harmonia se fundem e confundem estão os cantos e tambores dos navios negreiros, os pianos das madames das galés que chegavam da França, Espanha, Holanda e Portugal, as síncopes dos índios nativos.
João, no entanto, é origem e resultado do lado que não acumula. Na mistura de tudo e todos que nos formaram, ele é um homem do povo que sofisticou o que era do povo e devolveu ao mesmo, em forma e elegância.
Não fosse João e seríamos outro país. Não me atrevo a imaginar qual, mas outro. Um Brasil sem João, mais pobre em espírito e luminosidade. O que o artista fez por nossa imagem e autoestima é inimaginável, inafiançável e não tem preço. Um homem como João Gilberto atravessar uma crise financeira – próxima da miserabilidade – com a idade que está e com a saúde debilitada é de uma ingratidão infinda.
Tudo o que somos e cantamos tem um tanto dele. Até os poucos incautos e limitados que não enxergam a genialidade de João seriam outros não fosse ele.
Chico Buarque, Caetano e Gil, Djavan, Edu Lobo, Milton Nascimento entre muitos outros não seriam quem são – e eles vivem repetindo isto a cântaros – não fosse João. Façam, então, o que devem e vão lá pagar essa dívida inestimável a ele. Que o tirem, pois, do absurdo estado de miserabilidade. Um tantinho do vosso tempo, em forma de show, não custaria nada, não é mesmo? Um grande evento: “Em gratidão a João” bastaria pra confortar o seu entardecer.
Ao fim e ao cabo, cabe uma última e razoável pergunta. Que país é este, que permite que um de seus maiores filhos, um de seus grandes gênios, chegue a este limite? Onde estão governo federais, estaduais, prefeitura do Rio – o que seria o Rio sem João e vice e versa? Onde estamos, enfim, todos nós que nos jactamos das nossas bossas, navegamos orgulhosos por invenções geniais e largamos o inventor à míngua?
Às vezes acho que fomos todos para o inferno. Mas prefiro respirar, refletir e ouvir João. Nele sempre há uma resposta.
Foto: Capa do LP "Chega de Saudade"/Reprodução