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Quando Leonardo Boff e muitos outros chamam a atenção para o papel dos EUA no golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff, não é porque somos inocentes úteis pagos pelo ouro de Moscou, como se dizia na década de 1960 sobre os que defendiam o governo Jango, mas sim porque ainda é preciso denunciar o intervencionismo estadunidense
Por José de Souza Castro, no Blog da Kika Castro
Quando, na boa companhia de Leonardo Boff e de muitos outros, chamo a atenção para o papel dos Estados Unidos no golpe parlamentar que derrubou a presidente Dilma Rousseff, não é porque somos inocentes úteis pagos pelo ouro de Moscou, como se dizia na década de 1960 sobre os que defendiam o governo Jango Goulart.
É porque ainda acho que é preciso denunciar o imperialismo norte-americano, como pensava Daniel Ellsberg, o analista militar do Pentágono que, em março de 1971, entregou ao “The New York Times” os Documentos do Pentágno (7.000 páginas em 47 volumes) que, publicados a partir de junho, reforçaram a luta dos norte-americanos que se opunham à Guerra do Vietnã.
Tratado como um traidor pelo governo Nixon, Ellsberg foi inocentado pela Justiça e ainda vive, aos 85 anos. Tornou-se professor e ativista pela paz e contra as armas nucleares. Escreveu três livros – “Papers on the War” (1971); “Secrets: A Memoir of Vietnã and the Pentagon Papers” (2002); e “Risk, Ambiguity and Decision” (2001) – e incontáveis artigos sobre economia, política externa e desarmamento nuclear. Em 2006, ganhou o Right Livelihood Award, conhecido como o Prêmio Nobel Alternativo, “por pôr a paz e a verdade em primeiro lugar, sob considerável risco pessoal, e por dedicar sua vida a inspirar outros a seguir seu exemplo”.
Paulo Francis morava em Nova York e escrevia para a revista “Status” da Editora Três, quando, em plena ditadura militar, entrevistou Ellsberg. As verdades que ouviu podiam ser publicadas no Brasil, porque a revista, inspirada na norte-americana “Playboy”, tinha poucos milhares de leitores, a maioria mais interessada nas fotos de mulheres nuas do que nas revelações de Ellsberg.
Fundada em agosto de 1974, “Status” era vendida nas bancas encartada em envelope de plástico escuro para que a capa não ficasse exposta ao público, em obediência ao Decreto 1.077, que estabelecia censura prévia a qualquer revista ou livro que trouxesse fotos ou desenhos de mulheres nuas. A Portaria 209 determinava que a foto só podia ser liberada pelos censores caso não expusesse os dois seios da mulher (um era permitido) e as partes genitais.
Foi nesse ambiente de censura estúpida – aliás, bem ao agrado de muitos que saíram às ruas gritando “Fora Dilma!” – que Ellsberg admitiu a Francis que existia conexão entre os “Documentos do Pentágono” e o escândalo de Watergate, “mas nunca interessou aos liberais explorar a conexão”. Ele explicou:
“Porque isso seria admitir que somos governados dentro do mesmo espírito de violência e corrupção que preside as ações do país no exterior. O povo ficaria chocado. Qualquer povo. Daí a necessidade de apresentar Vietnã e Watergate como aberrações, fenômenos isolados de malaise num organismo sadio. Essa ladainha é partilhada por liberais e conservadores. E no entanto, é óbvio, me parece, que, se consentimos em que o governo decida secretamente invadir um país miserável e atrasado, com objetivo imperial, e pretendemos acreditar na desculpa de que Washington sempre defende a democracia e não interesses estratégicos fundados numa visão imoral do mundo, quem pode se surpreender se, internamente, o governo age na mesma linha?”Mesmo após a derrota no Vietnã, Gerald Ford (que sucedeu a Nixon) e Henry Kissinger enviaram secretamente agentes da CIA a Angola, para combater os negros que combatiam o colonialismo português. Outro fracasso da política externa dos EUA. Acredite, disse Ellsberg, que no Pentágono e em empresas contratadas, são estudados “planos de contingência” contra “as massas negras, marrons e amarelas do mundo que se multiplicam espantosamente e, na sua pobreza e desespero, um dia se revoltarão contra as sociedades industriais do Ocidente, que as exploram. É prevendo esse desfecho que nossos estrategistas estocam armas”. Para Ellsberg, se ao contrário, tivessem facultado aos pobres a tecnologia e outros recursos indispensáveis à criação de uma sociedade moderna, “os EUA teriam literalmente conquistado o mundo”. E explica: “Temos um gênio criador incomparável em serviços de todo tipo, de que a humanidade precisa. Já a predatória rota imperial termina encontrando obstáculos intransponíveis. Nesse contexto a resistência dos vietnamitas é emblemática do que acontecerá, um dia, no mundo todo”. Passadas três décadas, está longe da profecia se realizar, como ficou claro agora no Brasil. Na minha modesta opinião, uma mudança no mundo só ocorrerá se houver revolução nos Estados Unidos. Mas Ellsberg acreditava que, em seu país, não havia necessidade de revolução. “Do que precisamos é tornar a Constituição um instrumento de poder popular”. Para ele, Karl Marx não acrescentou nada a Thomas Jefferson. E tornar a Constituição um instrumento de poder popular “é mais uma reforma em nível nacional e internacional, devolvendo o poder ao povo, do controle de armas nucleares à eliminação das gestapos da CIA e FBI”. Precisaríamos, continuou Ellsberg, “revisar nossas relações com o Terceiro Mundo, entrar numa relação de cooperação internacional. Continuaríamos ricos, pois cobraríamos pelos nossos serviços, nada de caridade, mas deixaríamos de explorar o próximo”. Realista, ele admite que essa alternativa enfrenta enormes obstáculos no meio empresarial, militar e político dos Estados Unidos. O Brasil e os demais países do Terceiro Mundo que o digam. A íntegra da entrevista de Ellsberg não está disponível na internet, mas pode ser encontrada num livro publicado em 1978 pela Editora Três com uma coletânea dos artigos de Paulo Francis, em 138 páginas. Talvez eu volte ao livro, pois ele muito nos interessa por sua atualidade.